Governo ameaça com bloqueio e multa; crise afeta até jogo do Campeonato Russo.
O governo russo apertou ainda mais o cerco sobre a mídia não alinhada ao Kremlin, proibindo neste sábado (26) que a guerra na Ucrânia seja chamada pelo seu nome. O termo aprovado é “operação militar especial no Donbass”.
Este foi o nome dado pelo presidente Vladimir Putin à invasão, em discurso gravado que foi televisionado antes de o sol nascer na quinta (24). Ele remete ao reconhecimento das áreas rebeldes pró-Rússia no leste ucraniano, a bacia do rio Don (Donbass), que pediram ajuda militar contra uma suposta agressão de Kiev.
Como se vê com tropas nas ruas da capital da Ucrânia e ataques em múltiplos pontos do vizinho, a guerra ultrapassa e muito o Donbass. Mas não para o Roskomnadzor, a agência reguladora de comunicações de Putin.
Em comunicado, ela afirmou a dez órgãos de imprensa que suas publicações seriam bloqueadas se continuassem a usar o termo guerra, declaração de guerra, ataque ou invasão. Receberam o aviso da batalha narrativa meios conhecidos, como a rádio Eco de Moscou, a Novaia Gazeta (novo jornal, em russo), a TV Dojd (chuva) e os sites Mediazona e The New Times, entre outros.
Além de bloqueios e empastelamento, há a possibilidade de multas chegando até 5 milhões de rublos (R$ 300 mil). Desde 2012, quando houve grandes protestos contra sua vitória para um terceiro mandato presidencial, Putin acelerou seu projeto em curso para tolher a liberdade de imprensa.
O instrumento principal é uma lei daquele ano, que permite ao Kremlin chamar de “agente estrangeiro” qualquer entidade, meio de comunicação ou indivíduo que receba fundos do exterior. Como durante as “revoluções coloridas” contra regimes pró-Rússia na periferia ex-soviética da Rússia tinham apoio do Ocidente, Putin suspeitou de um padrão e resolveu endurecer em casa.
Na baciada entraram institutos independentes de pesquisa como o Centro Levada, ONGs de toda sorte e vários meios de comunicação. A classificação permite multas incapacitantes ao gosto de auditorias consideradas intimidatórias. Vários se mudaram para o exterior, como o site Meduza, baseado na Estônia.
Hoje, entre os sobreviventes da mídia mais livre, apenas a Novaia Gazeta não tem o título, graças ao fato de ter acionistas russos e pelo prestígio de seu editor-chefe, o Prêmio Nobel da Paz Dmitri Muratov.
Na mídia majoritária, principalmente TVs e suas extensões na internet, a guerra é chamada como o Kremlin quer. Na rede RT, mesmo no serviço em inglês, linhas gerais do discurso de Putin são parte constante das chamadas ao pé das telas, como se fossem notícias do dia.
Não que a mídia ocidental tenha primado por isenção na cobertura, com sinais evidentes de viés pró-Casa Branca em diversos meios. Mas ainda não se tem notícia de censura objetiva comandada por governos do Ocidente contra quem fala algo diferente, embora o Kremlin aponte que as “big techs” como Facebook são linhas auxiliares dessa Guerra Fria 2.0.
Há outros sinais de controle maior das comunicações. Usando sinal de operadoras de celular, foi possível perceber nas ruas moscovitas também uma degradação da velocidade de aplicativos de redes sociais como o Facebook e Twitter.
Na sexta, a Roskomnadzor anunciou que estabeleceria limites ao Facebook porque a rede havia suspendido por 90 dias a conta da agência estatal RIA-Novosti, acusando suas postagens sobre a guerra como desinformação. Neste sábado, a rede ampliou a lista de entes ligados ao Kremlin sob sanção digital.
Na Ucrânia também há apagões de internet em curso, mas aí a responsabilidade é atribuída pelo governo a ciberataques vindos da Belarus, ditadura que apoia a Rússia na empreitadas.
Como a Folha mostrou, há uma reação em curso em vários estratos da sociedade russa contra a guerra, muito devido ao fato de que há grandes laços de sangue entre famílias dos dois países. Celebridades, intelectuais e esportistas têm se manifestado, embora haja dificuldade de chegar às ruas devido à repressão policial que proíbe atos sem autorização prévia.
Na sexta (25), houve um ato menor em São Peterburgo, que foi dispersado. Na véspera, protestos em mais de 40 cidades resultaram em 1.800 detidos pela polícia.
Neste sábado, o Campeonato Russo de futebol começou a ver os efeitos da crise. No jogo que ocorrerá entre Dínamo de Moscou e o Khimki, os ucranianos do time não irão a campo: o zagueiro Ivan Ordets e o técnico da equipe, o ex-astro da seleção de Kiev Andrei Voronin.
“Consideramos desnecessárias explicações adicionais sobre sua ausência: é claro que, dadas as circunstâncias, seus pensamentos agora são sobre outra coisa”, disse comunicado do clube. Há seis ucranianos jogando na Primeira Divisão, e nenhum russo na Ucrânia. Ambos os países são pródigos em brasileiros nos seus times.
Por: Folha de São Paulo