Com futebol paralisado desde dezembro, seleção fez viagem de 37 horas de ônibus para treinar
F SÃO PAULO – Com o sonho da Copa do Mundo em campo, os escoceses no Hampden Park não vaiaram o hino da seleção adversária. Aplaudiram. Vários ensaiaram cantá-lo.
A jornada da Ucrânia representa uma das mais surradas frases do futebol. É muito mais do que um jogo. Há pouco mais de 100 dias, o país foi invadido pela Rússia e está em guerra desde então.
Eu sou escocês e fui capitão desta seleção. Cada partida que disputei quis vencer desesperadamente. O que está acontecendo agora na Ucrânia transcende o futebol. É vida ou morte. A Fifa tem de mandar a Ucrânia para a Copa do Mundo, não importa o que aconteça. Coloque cinco seleções em um dos grupos, não me interessa. A Ucrânia tem de ir para a Copa do Mundo”, disse, emocionado, o ex-volante Graeme Souness, integrante da equipe nos mundiais de 1978, 1982 e 1986.
Os ucranianos venceram a Escócia na quarta-feira (1º) por 3 a 1. Neste domingo (5), dia 103 da guerra, enfrentam País de Gales, em Cardiff, na final da repescagem da Europa. Estão a 90 minutos da vaga no torneio no Qatar. O início será às 13h (de Brasília), com transmissão da TNT Sports.
“Todo o mundo está na torcida pela Ucrânia. Se eles não estivessem jogando contra nós, eu também estaria”, definiu o técnico de Gales, Rob Page.
Se ganhar, a Ucrânia será (caso o conflito continue até novembro) o primeiro país em guerra declarada a disputar a Copa desde o Iraque em 1986.
Por causa da invasão, o futebol no país está paralisado. O último jogo disputado na liga nacional ocorreu em 12 de dezembro de 2021. A competição foi interrompida por causa do inverno e seria retomada em fevereiro, o que não foi possível. Foi declarado seu encerramento no final de abril, já que não existe perspectiva de retomada.
Da lista de 23 jogadores convocados para a repescagem, 15 atuam na Ucrânia. O meia Taras Stepanenko, do Shakhtar Donetsk, mudou-se com a mulher e três filhos para um abrigo de guerra em Kiev. O goleiro Georgiy Buschan foi fotografado em uma estação de metrô, em busca de proteção contra bombardeios. Serhiy Sydorchuk, capitão do Dínamo da capital, dormiu em seu carro com os filhos e a mulher grávida em um estacionamento.
Mesmo jogadores que atuam no exterior se disseram ansiosos por causa da espera por notícias de familiares que vivem na Ucrânia. É o caso dos laterais Oleksandr Zinchenko, do Manchester City, e Vitaliy Mykolenko, do Everton, e do atacante Andriy Yarmolenko, do West Ham (todos os times da Inglaterra).
Após a vitória sobre a Escócia, apareceram diferentes fotos e vídeos de soldados a comemorar o resultado.
“Não é apenas um jogo de futebol. Nós recebemos mensagens dos nossos soldados, e eles têm apenas um pedido: que nós façamos tudo para ir à Copa do Mundo. Para o país e para eles, é um momento de esperança”, definiu Taras Stepanenko.
Para ter alguma preparação antes da repescagem, o técnico Oleksandr Petrakov levou seus jogadores a um centro de treinamento nos alpes da Eslovênia. Foi uma viagem de ônibus, que durou 37 horas, por uma rota considerada segura. A equipe fez amistosos contra Borussia Monchengladbach (ALE), Empoli (ITA) e Rijeka (CRO).
“Eu tenho conversado com pessoas em todo o mundo, tenho falado com crianças ucranianas que não entendem o que está acontecendo e têm apenas um sonho: parar essa guerra. Mas, no futebol, nós temos o nosso próprio sonho: queremos ir para a Copa do Mundo. Queremos dar essa incrível emoção para os ucranianos porque eles merecem muito”, disse Zinchenko, antes da partida diante dos escoceses.
A Ucrânia precisa também superar torcidas rivais, já que o caminho para o Qatar é de duas partidas fora de casa, contra seleções também desesperadas pela classificação.
A Escócia não disputa a Copa desde 1998. O último jogo de Gales no torneio foi nas quartas de final de 1958, contra o Brasil, quando Pelé fez seu primeiro gol em mundiais.
A disputa da repescagem e a guerra acirraram ainda mais o nacionalismo da seleção ucraniana. Os jogadores não falam mais russo, a primeira língua que vários deles aprenderam. Yaremchuk se desculpou por ter publicado foto nas redes sociais ao lado de um rapper que no passado fez show na Crimeia, território ocupado pela Rússia. Agora os atletas escutam apenas músicas de artistas compatriotas.
“O mundo precisa saber a verdade. Esta é a minha missão. Você não pode descrever este sentimento a não ser que esteja na mesma posição em que estamos hoje. As coisas que acontecem no nosso país não são aceitáveis”, completou Zinchenko.