Sebastião Dias Braga Neto está internado em Ohio, nos EUA, para se submeter ao Cart-T Cell triplo contra leucemia, tratamento de 8 milhões de reais
O Globo – Em meados de 2021, o cineasta e produtor audiovisual Sebastião Dias Braga Neto, 37 anos, ouviu dos médicos que tinha poucos meses de vida após ser diagnosticado com um tipo gravíssimo de leucemia e o transplante de medula óssea não ter surtido efeito. Um ano se passou e Tião, como é chamado pelos amigos mais próximos, está vivo, “bem, na medida do possível”, como ele costuma falar, internado no James Cancer Hospital, em Columbus, Ohio, nos Estados Unidos, com confiança e expectativa. O brasileiro será a primeira pessoa no mundo a receber o tratamento que os médicos chamam de “esperança” para quem sofre deste tipo de câncer, o CAR-T Cell triplo.
Era março de 2020, uma semana antes de o comércio fechar as portas por conta da pandemia do coronavírus, quando Tião começou a sentir fortes dores nas pernas. A sensação veio enquanto arrumava as malas para passar um final de semana na casa dos pais em Florianópolis e à princípio não achou que era algo sério. Mas as dores se intensificaram e decidiu fazer exames. Já no primeiro hemograma veio o sinal de que as coisas não estavam normais.
— Meus leucócitos estavam alteradíssimos. O normal é em torno de 10 mil, o meu exame mostrava uma contagem acima dos 114 mil — relembra o cineasta.
Outro exame deu o veredicto: leucemia mieloide crônica (LMC), um tipo de câncer que acomete a medula óssea e se caracteriza pela multiplicação de glóbulos brancos anormais. Tião começou a se tratar com quimioterapia oral, um remédio de alto custo, no qual ele precisou entrar na justiça para que seu plano de saúde arcasse com as despesas.
A doença foi controlada. Após sete meses de tratamento em Florianópolis, e quando as medidas restritivas da Covid-19 se estabilizaram, ele voltou para São Paulo, pronto para recomeçar a vida. Entretanto, a doença teve a primeira recidiva. Novos exames apontaram que o câncer não só havia retornado, como evoluiu.
— Fui internado às pressas, precisei fazer quatro ciclos de quimio intravenosa e recebi uma bomba de toxicidade. Fiquei careca, perdi peso e transcorri por todas as etapas do procedimento agressivo para o tratamento. Passei o Natal e o meu aniversário no hospital. Durante esse processo, entrei na lista de transplante de medula óssea. Era a única alternativa no meu caso. Por sorte encontrei bastante doadores com 100% de compatibilidade, porém todos eram da Europa. Por conta da Covid, os órgãos de emergência médica estavam lentos, com muita burocracia e não dava para ser efeituado o translado. Graças a Deus, minha mãe fez o exame, deu 50% de compatibilidade e foi escolhida como minha doadora — diz.
O transplante foi um sucesso. Os novos exames mostraram que o câncer entrou em remissão e o corpo de Tião havia aceitado as células tronco da mãe dele com 100% de compatibilidade. Ele foi liberado do hospital, o cabelo cresceu, ganhou peso e seguiu a vida.
Quase um ano depois do transplante, Tião sentiu o olho inchar, um sintoma claro de retorno da doença. O câncer voltou ainda mais forte, com um tipo chamado de leucemia linfoide aguda (LLA). Os recursos de tratamento se esgotaram. O corpo estava muito fraco para fazer um novo transplante. Mas sem o transplante ele tinha poucos meses de vida.
— Ficamos sem chão e com as mãos atadas. As quimioterapias e radioterapias eram muito agressivas e o corpo dele não aguentaria outro transplante. Me lembro do médico entrando no quarto e contando para nós e para os pais dele a verdade nua e crua: ele tinha meses de vida — diz Thiago Amaral, marido de Tião.
A recidiva agressiva da doença, no entanto, foi a chave para a luz no fim do túnel. Uma amiga em comum do cineasta o colocou em contato com Vanderson Rocha, coordenador de terapia celular do Hospital Vila Nova Star e responsável pelas pesquisas há cerca de seis anos com as células CAR-T Cell no Hospital das Clínicas em São Paulo.
Após uma breve consulta, o médico ligou para o amigo, Marcos de Lima, chefe do departamento de hematologia e diretor do programa de transplante de medula óssea e terapia celular na universidade estadual de Ohio, nos Estados Unidos, e referência no assunto CAR-T Cell em terras americanas.
Coincidentemente, Lima estava buscando pacientes com o tipo da doença de Tião, ou seja, com leucemia linfoide aguda (LLA), para participar do primeiro estudo clínico de CAR-T Cell triplo no mundo. No mesmo dia, o cineasta se inscreveu para participar do estudo e foi chamado. Três meses depois, Tião estava recebendo três bolsas de plaquetas e duas de hemoglobina para poder pegar um avião com destino a Ohio, onde ele seria testado com a nova esperança do câncer.
CAR-T Cell triplo
O tratamento é revolucionário. Um adulto saudável tem em torno de 3 mil células brancas. Dentro delas há os linfócitos, que são as células de defesa do sistema. São elas que lutam contra viroses, por exemplo, mas também podem combater o câncer. O tratamento CAR-T Cell consiste em pegar essas células de defesa do paciente e modificá-las geneticamente, como se estivesse preparando-as para uma batalha e deixando-as ainda mais fortes, para quando retornar ao corpo do infectado, essas células tenham o único objetivo de encontrar e matar o câncer. Ou seja, o tratamento é personalizado.
As células cancerígenas contêm em sua superfície marcadores tumorais. O tratamento CAR-T Cell simples, por exemplo, combate um deles, o CD-19. Esse tratamento já começa a ser feito no Brasil, inclusive. O CAR-T Cell triplo, que está sendo testado em Tião, luta contra os três marcadores cancerígenos ao mesmo tempo, o que diminuiria o risco de uma recidiva.
— É extremamente admirável que o Tião tenha vindo aos Estados Unidos para o estudo. Ele simplesmente pegou a mala e veio. Arriscar um tratamento que nunca ninguém tomou antes, pois sabe que é uma esperança para ele e outras milhares de vidas. Apesar de termos começado agora, estamos dando esperança para essas pessoas — afirma Marcos de Lima.
Tião já retirou os linfócitos de seu corpo e as células já foram geneticamente modificadas. Por ser muito forte e poder causar reações em seu organismo, ele vai receber as novas células em duas etapas. A primeira, ocorrida em 12 de julho, o cineasta recebeu 40% das células fortificadas, porém na madrugada de terça para quarta (20), Tião apresentou febre de 40°C, uma das reações normais que o corpo pode ter depois da infusão, e a segunda dose, com 60% das células modificadas, que seria aplicada no mesmo dia, precisou ser transferida para a próxima semana.
— Ele tem respondido muito bem ao tratamento. Porém, reações são esperadas, como febre e confusões mentais, visto que o sistema dele está de fato em uma batalha. Essa parte é essencial e importantíssima para o estudo e para o Tião, pois o corpo dele está literalmente matando o câncer — afirma Rocha.
A expectativa é que dentro de um mês, quando fizer um novo exame de medula, a doença já tenha entrado em remissão e desapareça totalmente do sistema de Tião. Por ser um estudo novo, os médicos ainda não conseguem ter precisão com os dados, mas estima-se que o CAR-T Cell tenha um prazo de validade de 17 anos. A primeira paciente do mundo a receber o tratamento com o CAR-T simples, por exemplo, uma americana, completou dez anos de procedimento e uma década livre do câncer.
— Eu me sinto muito privilegiado. Para quem tinha apenas alguns meses, ganhar essa esperança, essa oportunidade única é quase como viver a vida adoidado. A vida é muito cara e a gente não tem tempo para perder. É isso que eu aprendi. Precisamos canalizar nossa energia, escolher nossas brigas, o tempo é muito precioso para perdermos com besteiras. Estou louco para viver novamente. Viajar, trabalhar, abraçar as pessoas, dizer que eu as amo. Quero apenas viver — diz Tião.
Embora seja conhecida como uma grande esperança, o caminho do CAR-T Cell ainda está no começo. Por enquanto o tratamento só é feito para três tipos de câncer: o primeiro e com estudos mais desenvolvidos até o momento são os linfomas não Hodgkin; o segundo são os mielomas múltiplos e, por último, as leucemias linfocíticas agudas, como a do Tião. Há estudos acontecendo em diversas partes do planeta com outros tipos de doença, entretanto ainda sem resultados.
Outro problema do CAR-T Cell é o preço. Apenas a produção das células comercialmente, sem contar a internação e os medicamentos, fica em torno de R$2 milhões. Estima-se que o pacote completo fique entre R$ 6 a 8 milhões. Como Tião está participando de um estudo clínico, ele não está pagando pelo tratamento. O custo dele ficará apenas com a estadia nos Estados Unidos quando sair do hospital para continuar o processo.
Um dos motivos do valor ser inacessível está relacionado a distribuição. Hoje, poucas empresas farmacêuticas são autorizadas a manipular as células do CAR-T Cell. A maioria localizada na Europa. Ou seja, as células do paciente são coletadas, enviadas para a Europa para fazer a modificação genética e depois de 3 a 4 semanas, ela volta ao seu destino de origem para serem implantadas novamente.
— O paciente pode não ter esse tempo de espera. Precisamos investigar locais para a fabricação local no intuito de diminuir o tempo do processo e baratear o produto. Hoje, infelizmente, é um tratamento inacessível para a grande maioria da humanidade — diz Lima.
CAR-T Cell no Brasil
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou recentemente o primeiro estudo clínico para desenvolvimento nacional do tratamento de CAR-T Cell que será realizado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, com financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Além dele, o Hemocentro de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, já produziu células de CAR-T Cell para sete pacientes.
Apesar de não ter estudos ainda sobre o CAR-T Cell triplo no Brasil, Rocha afirma que já há conversas e reuniões ocorrendo entre cientistas brasileiros e americanos, estudando a melhor forma para também começar estudos clínicos contra os três vetores cancerígenos.