Processo em que vice-presidente é acusada de chefiar uma associação ilícita criada para favorecer empresários amigos chega à fase de formalização das acusações
O Globo – O Ministério Público da Argentina acusou a atual vice-presidente, a senadora Cristina Kirchner, de coautoria dos delitos de associação ilícita e de fraudes contra o Estado e pediu que ela seja impedida de exercer cargos públicos. Os supostos crimes ocorreram quando ela era presidente da Argentina, de 2007 a 2015, e no governo do marido, Néstor Kirchner (2003-2007). O julgamento entrou na reta final e virou uma espécie de novela que milhões de argentinos acompanham com atenção, à espera de um veredicto final.
A denúncia dos promotores Diego Luciani e Sergio Morla será feita nos próximos dias e tudo indica, segundo informações publicadas pela imprensa argentina, que ambos pedirão a prisão de Cristina e, ainda, a proibição de que exerça cargos públicos pelo resto de sua vida.
A previsão era de que a leitura da acusação fosse concluída nesta segunda-feira, mas a vice-presidente pediu a seus advogados para ampliar sua defesa nesta terça, o que provocou uma demora no processo. Em sua conta na rede social Twitter, Cristina escreveu que solicitou esta ação dos advogados da defesa diante “da falta de provas”.
A vice-presidente se sente acuada e sua situação pessoal é hoje sua principal preocupação, admitem colaboradores. Uma eventual prisão de Cristina ainda parece um cenário pouco provável, mas não mais impossível. Hoje, a vice-presidente, que também é presidente do Senado, tem foro privilegiado e não poderia ser detida, a menos que a Justiça a flagre cometendo um delito. Em fevereiro de 2023, Cristina fará 70 anos e, a partir desse momento, poderá, se for o caso, solicitar o benefício da prisão domiciliar.
Na audiência da última sexta-feira, os promotores afirmaram que consideram suficientes as provas conseguidas para sustentar que Cristina foi chefe de uma associação ilícita que, em seu governo e no do marido, favoreceu o empresário Lázaro Baez, que foi sócio da ex-família presidencial, em concessões de obras públicas. Muitas das obras, afirmaram os promotores, não foram terminadas e em muitos casos, disseram, foram superfaturadas. O delito de fraude contra o Estado está previsto no Código Penal argentino e prevê pena de até seis anos de prisão, além da proibição de ocupar cargos públicos.
Em um de seus pronunciamentos no julgamento, o promotor Luciani disse uma frase que marcou o processo e instalou um clima de medo pelo futuro entre muitos peronistas:
— Néstor Kirchner, e posteriormente sua mulher, Cristina Fernández, instalaram e mantiveram no coração da administração pública nacional uma das matrizes de corrupção mais extraordinárias já desenvolvidas no país.
O julgamento começou em 2019 e nele são investigadas supostas irregularidades em 51 obras públicas, nas quais foi favorecida a empresa que Báez fundou após a eleição de Kirchner, a Austral Construções. Já são mais de 600 horas de julgamento, mais de 100 testemunhas e 120 audiências.
Quem conhece a história dos Kirchner sabe que Báez — atualmente sob regime de prisão domiciliar e envolvido em outros processos de corrupção —, antes da eleição de Kirchner como presidente, em 2003, era apenas um funcionário do Banco da província de Santa Cruz, da qual o ex-presidente foi governador duas vezes. Com a chegada da família ao poder, o ex-bancário tornou-se um empresário bem-sucedido no setor da construção, chegando a acumular uma grande fortuna. Sua riqueza está diretamente relacionada a obras públicas, em Santa Cruz e outras províncias argentinas. A relação entre os Kirchner e os Báez é conhecida por todos, e ficou ainda mais confirmada quando o empresário construiu e doou o mausoléu onde está o corpo de Kirchner, falecido em 2010, na cidade de Rio Gallegos, capital de Santa Cruz.
As acusações dos promotores foram baseadas em chats, documentos, depoimentos de testemunhas e até mesmo um testamento. No entanto, a aliança governista Frente de Todos insiste em acusar a Justiça de perseguição política, em momentos em que a Casa Rosada continua mergulhada numa delicada crise política, econômica, social e financeira. Fontes do governo admitiram que o avanço de um processo complexo para Cristina “complica as tentativas do governo de recuperar confiança”.
Este é apenas um dos processos judiciais contra a vice-presidente, que já foi indiciada em 10 casos envolvendo, principalmente, denúncias de suposta corrupção. Deste total, cinco processos já avançaram e chegaram à instância de julgamento oral, como é o caso no qual atual os promotores Luciani e Morla, primeiro a ser realizado nos tribunais argentinos. O julgamento oral é o último passo do processo. Após a Justiça considerar que está finalizada a chamada etapa de instrução, um tribunal julga e determina se a pessoa indiciada é ou não culpada pelo delito do qual é acusada. O papel dos promotores é apresentar provas contra a acusada e pedir uma condenação. A palavra final é do tribunal.
Um dos casos contra a presidente, no qual também foram indiciados seus filhos, Máximo (deputado) e Florencia, é o chamado “Hotesur”. Em maio de 2018, o juiz Julian Ercolini, encarregado das investigações, determinou que Cristina e seus filhos cometeram o delito de lavagem de ativos e associação ilícita. O dinheiro, sustentou na época Ercolini, foi lavado através de hotéis que a família Kirchner tem em Santa Cruz.
Cinco processos contra Cristina ainda estão em etapa de investigação, mas, em alguns deles, a vice-presidente já foi indiciada. Um deles é o chamado caso dos “Cadernos da Corrupção”, no qual Cristina foi considerada a chefe de uma associação ilícita que funcionou entre 2003 e 2015, montada para desviar dinheiro de obras públicas. Neste caso, que esteve em mãos do juiz Claudio Bonafini, já falecido, a vice-presidente foi indiciada e foi solicitada sua prisão preventiva.
Nos últimos dias, setores do kirchnerismo promoveram uma campanha nas redes sociais e nas ruas para antecipar “uma confusão”, se “alguém se meter com Cristina”. Representantes do governo, entre eles o chanceler, Santiago Cafiero, também defenderam publicamente a vice-presidente. “A extrema direita na América Latina é antidemocrática. O fizeram com Perón e, recentemente, com líderes populares da região como Evo Morales e Lula. Mas nossos povos são justos: não abandonam os que apostaram por eles”, escreveu o ministro das Relações Exteriores, em sua conta no Twitter. Em momentos de tensões e ameaças externas, o peronismo, mais uma vez, está unido.