Estudo do Instituto Sou da Paz, que constata efeitos da política de flexibilização do acesso a armas do governo Bolsonaro, foi realizado entre 2017 e 2022
O Globo – Depois da política de flexibilização de acesso a armas e munições do governo Bolsonaro, o arsenal de criminosos se tornou mais moderno e potente, segundo um levantamento do Instituto Sou da Paz divulgado ontem. Entre 2017 e 2022, a participação dos fuzis entre as armas apreendidas saltou 50% em São Paulo e 16% no Rio de Janeiro. A proporção de pistolas, também autorizada para civis pelo presidente, aumentou 31% em São Paulo e 32% no Rio.
O pesquisador Bruno Langeani, gerente do Sou da Paz, explica que os dois estados, juntos, somam 17% das apreensões de armas de fogo no país, além de serem locais de origem de facções com expressão nacional e internacional. Para Langeani, as mudanças na lei resultaram não só em uma facilitação para civis de acesso a armas antes restritas e de uso controlado, mas em uma mudança rápida do perfil do arsenal nas mãos desses criminosos.
— É uma mudança para pior, de armas mais rudimentares para armas mais perigosas. Se formos olhar o histórico, é natural da atividade criminosa buscar melhores armas. Mas o que vemos é o governo facilitando essa modernização — lamentou.
As consequências de um crime com uma pistola semiautomática são muito mais graves do que a de outro envolvendo um revólver calibre 38, lembra o gerente do instituto. As chances de morte são maiores e esse tipo de arma leva a mais vítimas de balas perdidas, porque tem maior alcance. Além disso, são exemplares que disparam mais rápido e carregam mais munição ao mesmo tempo.
— Um bandido trocando tiro com revólver 38 precisa parar depois de seis tiros, abrir o tambor e trocar a munição manualmente. No caso da pistola, com um aperto de botão, ele joga fora o carregador vazio, coloca um novo, com 15 munições, e continua dando tiro na polícia — detalhou Langeani.
O acesso a armas mais potentes por civis foi facilitado a partir de 2017, na gestão Michel Temer, e principalmente no governo Bolsonaro. No governo Temer, o Exército liberou o chamado “porte de trânsito” para atiradores esportivos, que permitiu à categoria levar uma arma curta carregada e pronta para o uso em seus deslocamentos para competições e treinamentos. Na prática, a mudança marcou o início de uma corrida para obter a licença de atirador.
Na gestão Bolsonaro, foram mais de 40 medidas para facilitar a compra, o porte e a ampliação de tipos de armas, calibres e acessórios disponíveis para civis, assim como aumento dos limites de arsenal. As alterações aumentaram em quatro vezes a potência das armas liberadas para civis.
— O caso do Roberto Jefferson é muito emblemático para mostrar a consequência disso. Ele estava com um fuzil enquanto os policiais estavam com pistola de 14 munições. Os policiais estavam em desvantagem tática muito forte — afirmou o pesquisador, em referência ao ex-deputado que usou granadas e rajadas de fuzil para resistir à prisão no domingo, em Levy Gasparian, no interior do Rio.
Novos desvios
Segundo Langeani, a forma como uma arma chega ao mercado ilegal também mudou no atual governo. Se antes o mais comum era o roubo de uma arma legalizada, hoje os criminosos se aproveitam das falhas do Exército na concessão e vistoria dos certificados para se municiar. Procurado, o Exército não se manifestou até o fim desta edição.
A prática mais comum é o uso de pessoas sem antecedentes criminais para uma compra legal, depois repassada para facções. Outra modalidade recente de desvio é o roubo das transportadoras, durante o trajeto da arma da fábrica para a loja.
Langeani cita o caso de Vitor Furtado Rebollal Lopes, o Bala 40. Ele tinha registro de atirador e instrutor de tiro e foi preso em Goiânia em janeiro. Em sua casa no Rio, foram apreendidos 26 fuzis, três carabinas, 21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda, um rifle, um mosquetão e 11 mil balas de fuzil. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, Rebollal participava de grupos de WhatsApp especializados em negociar drogas, armas e munições.
O MP descobriu que ele comprava material bélico em lojas legalizadas e revendia para grupos criminosos, especialmente a uma facção carioca. Os fuzis apreendidos com Rebollal eram do modelo T4, da Taurus, calibre 5,56 mm. Lançado em 2017, ele começa aparecer nas apreensões dois anos depois, quando o Exército permite a compra por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Segundo o Sou da Paz, 29 exemplares foram apreendidos neste ano (26 deles com Rebollal), diante de quatro em 2019. Pelo documento de registro de uma das armas encontradas com o traficante, é possível ver o tempo em que ela demorou para chegar ao mercado ilegal.
— O número de série prova que foi fabricada em novembro de 2020. O Exército emitiu o registro em março do ano seguinte e, em janeiro deste ano, a polícia o interceptou para impedir que repassasse a arma. É um caminho muito curto entre a fábrica e o uso criminal — alertou Langeani.