Ministério da Justiça adota discurso cauteloso com a PM-DF, enquanto presidente é mais duro contra a corporação
Folha de São Paulo – Num contexto de desconfiança do governo federal com forças de segurança e de troca no comando do Exército após os atos golpistas de 8 de janeiro, o Ministério da Justiça, chefiado por Flávio Dino (PSB), tem feito acenos a policiais militares na tentativa de não desgastar uma relação já tensionada pelo alinhamento de parte das tropas ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A avaliação do governo foi a de que a intervenção do presidente Lula (PT) na segurança do Distrito Federal tem potencial para acirrar a animosidade dos policiais militares e, por isso, a estratégia é a de responsabilizar apenas a cúpula da corporação, ressaltando o heroísmo dos agentes que expulsaram os vândalos das sedes dos três Poderes.
Da parte de policiais sobram reclamações sobre a intervenção e a prisão do ex-comandante da Polícia Militar do Distrito Federal Fábio Augusto Vieira.
Já do ponto de vista institucional, representantes da classe afirmam que as críticas são pessoais e pontuais e que as Polícias Militares repudiam os atos violentos e são fiéis às autoridades constituídas, sem sinais de instabilidade ou subversão.
O secretário nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar (PSB), afirma à Folha haver espaço para “estabelecer outro tipo de relação” com esses policiais. Ele defende o diálogo e diz que “essa medida começa nesse episódio que marca de forma grave a PM-DF”.
Alencar afirma que atribuir “responsabilidade plena e completa de toda a instituição não seria reconhecer que a partir da intervenção, com o comando recomposto, assim como na posse presidencial, a PM reagiu e serviu aos interesses da sociedade”.
Ele ressalta que pode ter havido negligência pontual de policiais que pareciam confraternizar com os golpistas e tiravam fotos, por exemplo.
“O que está se procurando fazer é separar a responsabilidade objetiva de autoridades que têm atuação da instituição PM-DF. Não é uma estratégia de narrativa, é a separação necessária, porque ninguém faz segurança pública sem as forças […] Claro que a intervenção pode ter ferido os brios [da PM], mas não houve um episódio de reatividade das corporações.”
Questionado a respeito do bolsonarismo nas polícias, o secretário diz que “Bolsonaro conseguiu se aproximar, mas não entregou nada”.
“Bolsonaro teve ascendência pela disposição de dialogar e enaltecer. Por isso, a gente sabe na largada que é fundamental o diálogo”, completa, mencionando que o governo federal dará atenção a demandas da classe.
O discurso de apaziguamento com os policiais militares ficou evidente num evento promovido pelo Ministério da Justiça, no último dia 13, para homenagear as forças que atuaram no dia 8.
“Resolvemos fazer esse evento […] para mostrar que a intervenção federal decidida pelo presidente Lula não foi um ato contra as corporações de segurança do Distrito Federal. Foi um ato em apoio às corporações de segurança e do sistema de Justiça”, afirmou Dino, ministro da Justiça.
Da parte do próprio presidente, ao contrário, as falas têm sido mais duras. Lula afirmou que “teve muita gente da PM conivente” e lembrou que houve insatisfação com a atuação da PM desde que bolsonaristas promoveram caos em Brasília em 12 de dezembro.
“É fácil a gente ver nas invasões os policiais conversando com os agressores. Já no dia 12, na minha diplomação, o quebra-quebra que teve em Brasília, a PM acompanhava as pessoas tocando fogo em ônibus e nada foi feito. Havia conivência explícita da polícia apoiando os manifestantes”, disse.
Na ocasião, o departamento de operações era chefiado pelo coronel Jorge Naime que, segundo o ex- comandante da PM preso, estava presente no ato golpista apesar de estar de férias. Ele é presidente da associação de oficiais da PM-DF, que não quis se manifestar.
Vieira, ex-comandante da PM-DF, relatou ainda que havia um major da reserva da corporação chamado Claudio Santos entre os golpistas. Um levantamento do jornal O Globo aponta que nove policiais militares, do DF e de três estados, estão envolvidos nos ataques –sete deles foram presos.
O interventor Ricardo Cappelli, que é civil e jornalista, diz com frequência que é preciso separar o joio do trigo, que tem plena confiança na corporação e chama os policiais de heróis.
Ele visitou os 44 militares feridos na operação e anunciou que eles serão agraciados com medalha e eventual promoção por ato de bravura.
Para Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV, o Ministério da Justiça adota um tom cauteloso na crise com as forças de segurança numa “estratégia de medir impactos e não gerar mais fricções num processo em andamento, já que qualquer nova variável pode desestabilizar tudo de novo”.
Lima aponta que outro gesto de Cappelli foi manter a linha de comando da PM-DF.
“Ou seja, vamos apurar responsabilidades individuais, porque a instituição é maior que isso. Na política, é um gesto correto, mas não suficiente. É preciso um horizonte de transformação. Estabelecer controle, transparência e responsabilização na cultura institucional”, diz.
O pesquisador lembra ainda que, no motim no Ceará, em 2020, o governo Bolsonaro também adotou um discurso de reverência às polícias.
“O arsenal do político diante da crise de segurança é tentar debelar a crise sem romper com a força policial, porque ela é fiadora ordem. Essa reverência precisa ser de reconhecimento do papel institucional, mas também de cobrança da responsabilidade.”
O subtenente Heder de Oliveira, presidente da associação de praças de Minas Gerais e da Anaspra (Associação Nacional de Praças), diz que a entidade é contra a intervenção e que ela gera uma preocupação em outros estados em relação ao “uso excessivo do poder”.
“Qualquer remédio em dose cavalar vira veneno. A intervenção afetou o moral da tropa, é como se todos os policiais militares fossem coniventes com tudo”, diz ele, para quem “os fatos foram muito graves e deve haver responsabilização de acordo com a lei, mas não de forma generalizada”.
Oliveira afirma que os policiais militares não encontram diálogo no governo e diz esperar que exista essa disposição não apenas na retórica.
“O grande problema que jogou a segurança pública no colo da direita é porque a esquerda nunca abriu uma janela conosco, porque, para a esquerda, o policial é bandido. Bolsonaro fez o aceno de nos ouvir.”
O coronel da PM de Santa Catarina Marlon Teza, presidente da Feneme (federação nacional de oficiais), diz não haver receio de intervenções em outros estados “pelo clima completo de ordem presente” e afirma que as críticas ao governo são individuais e restritas e não expressam o sentimento coletivo.
Em nota, a entidade repudiou os atos de violência e cobrou responsabilização.
Teza diz que as preferências políticas dos militares não contaminam o trabalho, que a característica dos policiais é cumprir a lei e assegurar o Estado democrático de Direito e que o reconhecimento do governo federal é salutar.