Para que exista condenação por genocídio, investigações precisarão mostrar que houve intenção ou omissão direta para até se chegar à situação de crise humanitária
O Globo – As condições às quais os indígenas ianomâmis foram submetidos podem configurar um crime de genocídio, explicam juristas. No entanto, a tipificação penal só será concreta se ficar provado que houve uma atuação deliberada para que a situação chegasse a esse ponto, inclusive por omissão. A polícia terá que apurar quem era responsável por cada ato que tenha resultado na crise humanitária, numa investigação que pode começar em funcionários que atuavam dentro da terra indígena e chegar até ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
O artigo 1º da lei 2.889/1956 define como genocida quem teve “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. O cenário atual na Terra Indígena Yanomami (TIY), em que mais de mil indígenas foram resgatados por equipes do Ministério da Saúde em estado grave de saúde, poderia ser interpretado como um dos crimes previstos pela lei: “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”, explica Matheus Falivene, doutor em Direito Penal pela USP.
Para que pessoas sejam julgadas por crime de genocídio, porém, será preciso investigar se houve dolo.
— O caso ianomami pode ser classificado como genocídio desde que haja comprovação do dolo. A polícia vai ter que investigar e, se for apurado que houve atuação deliberada para fazer esse povo tivesse esse sofrimento sem ter condição de existência, configura-se genocídio — explicou Falivene. — É preciso analisar o motivo que gerou situação de fome, se foi ocasional, se foi causada por um grupo, se teve atuação deliberada de pessoas.
Dolo pode acontecer por omissão
A atuação deliberada pode ser configurada também por omissão, diz Falivene. Ele explica que qualquer crime do código penal pode ser cometido também por meio da omissão. Como o governo tem o dever de cuidar das terras indígenas, e auxiliá-los quando necessários, essa linha de investigação pode ser colocada em prática.
Nesse caso, então, é necessário apurar se a omissão foi de fato relevante para o resultado de crise humanitária. Vale destacar que nos últimos anos não só entidades e ONGs vêm alertando sobre a situação, mas o próprio Ministério Público Federal (MPF) ingressou com diversas ações pedindo ações enérgicas do governo federal. O MPF de Roraima, por exemplo, obteve decisões judiciais que obrigava o estado a instalar três bases de proteção na TIY, a formular plano emergencial de retirada dos garimpeiros invasores, e a intervir no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomâmi (DSEIY). Quase nenhuma ordem, porém, foi cumprida.
— Se eles (autoridades) sabiam que havia problema de fome e nada fizeram é possível ter dolo da omissão — diz Favilene.
O jurista destaca que em 2006 já houve o julgamento de um caso em que 12 garimpeiros foram condenados por genocídio, justamente na terra ianomami, por causa de assassinatos em massa. A associação entre o avanço do garimpo e a deterioração social e sanitária sempre foi alertada por especialistas.
Se as investigações concluírem que a omissão do governo foi no sentido de impedir o combate ao garimpo, mas não na prestação de assistência médica ou alimentar, a condenação por genocídio torna-se mais difícil, acredita Favilene. Porque, nesse caso, a chamada “relação de causalidade” ficaria mais distante.
Possibilidade de condenação internacional
Há, ainda, outra possibilidade de responsabilização, no Tribunal Penal Internacional. Mas o jurista da USP acredita que a melhor alternativa nesse caso seria aplicar a própria legislação brasileira, pois os processos internacionais, ainda que o estado brasileiro seja responsabilizado, costumam acontecer em situações de guerras ou conflitos com povos de outros países.
Além do dolo, a condenação por genocídio ainda demanda a individualização da conduta. Ou seja, é necessário identificar quem foi o responsável pelos crimes. Mesmo que o genocídio seja, normalmente, cometido por um governo ou um grupo de pessoas, o código penal só pode processar, criminalmente, indivíduos. Nessa situação, as investigações poderão atingir desde pessoas na ponta, que estavam dentro da TIY, até a chefia do governo, no caso o ex-presidente Jair Bolsonaro.
— O genocídio demanda, em vias de regra, uma cadeia de comando, por ser extermínio contra um grupo étnico. Não é um crime que normalmente alguém comete sozinho, pois demanda a estrutura. Aí é preciso investigar todo o pessoal. Em tese, poderia chegar no ex-presidente. É preciso ver quem eram os responsáveis por cada ato — explicou o jurista.
Procuradores da República apontam responsabilização do estado
Nesta terça, os procuradores do Ministério Público Federal de Roraima, Alisson Marugal e Matheus Bueno explicaram como a situação chegou nesse nível, na terra ianomâmi. Em relação à tipificação ou não, de crime de genocídio, o procurador Matheus Bueno afirmou que já está configurada uma grave crise humanitária e, consequentemente, a responsabilização do governo do ponto de vista cível. Já a responsabilização criminal demanda de maus apurações para indicar se há ou não elementos para isso.
— O que dá para reconhecer é que a situação que as crianças se encontravam impedia a comunidade de se renovar. Inclusive são várias comunidades ianomami, então não se trata apenas de uma tentativa de eliminação de todos povos da TI Yanomami, mas sobretudo de identificar se determinadas comunidades teriam ou não risco de extinção. Considerando cada contexto. São várias questões que precisam ser aprofundadas na investigação.
Alisson Marugal ainda disse que já foram identificadas comunidades que “passam por profundo processo de desestruturação sociocultural” dentro da TIY, por causa do garimpo.
— Estive ano passado no Aracaçá, onde houve suposto caso de estupro de criança, e a comunidade passa por processo gradativo de extinção. Eram mais de 40 indígenas há poucos anos, agora são 25,que trabalham para o garimpo, e há problemas com alcoolismo e exploração de mulheres exploradas. É uma situação que pode levar sim à eliminação da comunidade. Indicadores mostram muito bem que os indígenas estão morrendo por falta de assistência médica, por desnutrição, o que leva à desestruturação, como um evento preliminar que pode levar à extinção.
Além da omissão do governo federal, o procurador ainda destacou os problemas enfrentados com o governo estadual de Roraima, desde declarações simpáticas ao garimpo por parte do governador Antonio Denarium, à sanção de leis que fragilizavam a proteção ambiental, como a lei que proibia a destruição de equipamentos apreendidos em operações contra o garimpo, texto que foi posteriormente declarado inconstitucional.
— Foi bastante grave atuação do estado de Roraima. O estado tem uma grande responsabilidade sobre o problema
IAB culpa governo Bolsonaro
Em nota divulgada nesta terça, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) atribuiu a crise na terra ianomâmi à “omissão do Estado brasileiro nos anos recentes, orquestrada pelo último governo, que promoveu uma política de completo abandono e deliberado aniquilamento” dessas populações.