Referendos em quatro regiões estão marcados para setembro, mas resistência interna e dificuldades nas frentes de combate podem colocar um freio às forças de Putin
O Globo – “Eu quero dizer mais uma vez: a Rússia está aqui para sempre.” No dia 6 de maio, semanas depois de Moscou anunciar uma mudança brusca em seus planos da invasão da Ucrânia, Andrei Turchak, secretário do Conselho Geral do Rússia Unida, principal sigla governista do país, fazia uma visita a Kherson e deixava claros alguns dos objetivos do Kremlin não apenas para aquela, mas para todas as regiões ocupadas no país vizinho.
— Não haverá retorno ao passado. Vamos viver juntos, desenvolver esta região rica, rica em patrimônio histórico, rica em seu povo que aqui vive — afirmou Turchak, de acordo com a agência Tass.
Agora, quando a guerra completa seis meses, na próxima quarta-feira, as administrações pró-Rússia estão prestes a realizar referendos para “legitimar” uma anexação, nos moldes do que foi feito na Crimeia em 2014, num movimento que marca um novo capítulo não só do conflito, mas do futuro da região.
Oficialmente, o Kremlin tenta se afastar de rumores sobre as anexações: os referendos, diz o roteiro oficial, são apenas a demonstração da vontade da população, agora livre das “amarras ucranianas”, embora essas votações, marcadas inicialmente para 11 de setembro, sejam apenas parte da equação.
Hoje, a Rússia ocupa cerca de 20% do território ucraniano, controlando partes consideráveis das províncias de Kherson (Sul), Zaporíjia (Sul) e Donetsk (Leste), além da totalidade de Luhansk (Leste), naquela que é vista como a principal vitória russa no front. Ali, o Estado russo ofereceu a concessão de cidadania, numa política conhecida como “passaportização”, adotou símbolos russos e referências à União Soviética e agiu para promover o idioma russo.
Celulares e impostos
Contudo, Moscou tem ido além: em questão de semanas, os códigos internacionais dos telefones foram modificados para +7, o mesmo usado na Federação Russa. Os moradores foram incentivados a seguirem as leis tributárias russas: as autoridades pró-Moscou chegaram a impor uma data, 1º de agosto, para que os novos registros na Receita local fossem feitos.
As escolas estão em uma transição para o currículo adotado na Rússia, e professores vindos de outras regiões russas estão sendo convocados para trabalhar nas áreas ocupadas, com a promessa de um salário de até 8,6 mil rublos por dia, ou R$ 750. Hoje, o salário médio mensal na Rússia é de 62 mil rublos, ou R$ 5,4 mil.
— Isso é um complicador, eles estão tentando se impor. Outro exemplo é a tomada de locais como a usina nuclear de Zaporíjia — disse Angelo Segrillo, professor de História da USP e um dos maiores especialistas em Rússia e ex-URSS no Brasil, referindo-se à central comandada pelos russos desde março. — Eles querem alterar as linhas de transmissão, a Ucrânia pode deixar de receber energia, e ela vai sendo tomada aos poucos, diminuindo de tamanho.
É impossível não fazer algum tipo de analogia com os fatos ocorridos na Crimeia no começo de 2014. Em questão de semanas, em meio ao caos político na Ucrânia naquele momento, a Rússia estabeleceu controle sobre a península e organizou um referendo que marcou a anexação, firmada no dia 18 de março de 2014.
Não houve combates de grande intensidade, tampouco resistência local. Cartazes com o slogan “Voltamos à nossa casa” foram espalhados nas ruas de cidades como Sebastopol — a eleição presidencial de 2018 ocorreu no mesmo dia em que a ocupação completava quatro anos. Na região, Putin venceu com mais de 90% dos votos.
Esse roteiro é, ao menos na opinião do Kremlin, o melhor dos mundos: afinal, mesmo com a anexação reconhecida por poucos países, a Rússia não sofreu grandes punições por ocupar, em pleno século XXI, o território de outro país soberano. Mais do que isso, a presença de Moscou na Crimeia é vista por boa parte dos moradores como algo positivo — a resistência interna foi suprimida, e mesmo após o início da guerra segue incipiente.
— A Crimeia é algo diferente, a população de origem russa ali chegava a 80%, 90%, e até 1954 ela fazia parte da Rússia, dentro da União Soviética — aponta Segrillo. — As regiões separatistas [Donetsk e Luhansk] tinham muitos russos, mas eles não chegavam a 90%. Eram pouco menos de 50%, e isso agora mudou, não é? Não é uma maioria esmagadora da população, e por isso está se discutindo o que fazer agora.
Resistência
Além das questões populacionais, não se pode esquecer do principal: hoje, as regiões cobiçadas pela Rússia se encontram em meio a um violento e estagnado conflito, que provocou grandes baixas dos dois lados e deixou cidades inteiras destruídas. As forças russas também são acusadas de cometerem atrocidades contra civis, algo que não será esquecido com uma campanha de propaganda ou novos passaportes.
— Essa guerra bastante sangrenta mudou a escala do que está em jogo ali, mudou o cálculo político. Não é simplesmente uma questão de propaganda, de “soft power”, é uma questão militar — afirmou Mauricio Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). — Estamos ainda vendo o auxílio externo à Ucrânia, deixando o Exército local com capacidade de bombardear os russos a centenas de quilômetros das frentes de combate.
Ao mesmo tempo em que os russos e seus aliados locais lutam para ampliar seu já extenso território, a Ucrânia mantém combates em todas as áreas ocupadas, e tenta dar os primeiros passos de uma contraofensiva no Sul, com foco em Kherson. Pontes usadas como linhas de suprimentos para as já desgastadas forças russas foram destruídas, mas os estragos ainda não foram suficientes para forçar um recuo.
Dentro das regiões ocupadas, milícias lideram a resistência em cidades como Melitopol (Zaporíjia), e atentados contra autoridades pró-Moscou são recorrentes: administradores, assessores e cidadãos comuns apontados como russófilos são alvos considerados “legítimos” de carros-bomba, ataques a tiros e envenenamentos.
Nesse cenário, e com avanços tímidos das forças de Moscou, há rumores de que os referendos poderiam ser adiados para o final do ano. Também pesam os ataques cada vez mais ousados dos ucranianos, que destruíram instalações dentro do território russo e, embora não confirmados, unidades militares na Crimeia.
— Quando chegarmos ao final do ano, quando tivermos o balanço claro de quanto a Ucrânia perdeu, quanto a Rússia perdeu, ficará mais claro o tamanho dessa guerra — opinou Santoro.
Perdas colossais no front
Em seis meses de guerra na Ucrânia, a Rússia divulgou apenas um balanço de seus mortos, 1.351, em março. Os ucranianos afirmam que mais de 40 mil soldados invasores morreram, bem acima de estimativas ocidentais, em torno de 15 mil — para efeito de comparação, 14 mil soldados soviéticos morreram na Guerra do Afeganistão (1979-1989). Do lado ucraniano, o governo reconheceu, em junho, a morte de 10 mil combatentes, mas o número deve ser maior — Kiev admite que mais de 100 militares morrem diariamente.
As perdas de equipamentos tampouco são claras: a Rússia não divulga balanços sobre quantos tanques e equipamentos de artilharia perdeu, mas fotos de blindados destroçados revelam um impacto significativo na segunda maior potência militar do planeta. Serviços de monitoramento independentes sugerem que até 5 mil veículos foram perdidos. Entre as “baixas” está o cruzador Moskva, afundado em abril.
Em junho, um representante de Kiev declarou que o país perdeu cerca de metade de seu arsenal, incluindo mais de 400 tanques e 700 equipamentos de artilharia. No mesmo mês, o presidente Volodymyr Zelensky apontou que até 200 aeronaves foram destruídas. Do lado russo, foram abatidas cerca de 85 aeronaves. O número não inclui ao menos nove caças destruídos na explosão de uma base na Crimeia, no dia 9.