Democrata tenta passar mensagem de interesse renovado por América Latina, mas organização de evento acumula desgastes
Folha de São Paulo – O presidente Jair Bolsonaro (PL) avalia não comparecer à Cúpula das Américas, nos Estados Unidos, numa agenda em que se encontraria pela primeira vez com Joe Biden. A reunião de líderes do continente está marcada para o início de junho, em Los Angeles.
A possível ausência do mandatário brasileiro na reunião internacional organizada pelo americano foi noticiada pela agência Reuters e confirmada pela Folha. De acordo com diferentes interlocutores, a decisão de Bolsonaro sobre comparecer ou não ainda não foi tomada, mas uma série de fatores pesa para a falta de interesse dele em viajar aos EUA agora.
A principal delas, segundo dizem essas fontes, é o cenário interno no Brasil. O presidente está em pré-campanha pela reeleição e tem demonstrado resistência em sair do país para cumprir uma agenda internacional —seu último deslocamento do tipo foi para a Guiana, na semana passada. Embora tenha esboçado uma reação nas últimas pesquisas, ele ainda está atrás do líder nas sondagens, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Bolsonaro tem afirmado a aliados que sua prioridade nos próximos meses é a reeleição. Para a diplomacia, agendar um encontro com Biden nessas condições cria o risco de o mandatário desistir da viagem na última hora, o que geraria o constrangimento de cancelar a reunião com o líder da mais importante potência internacional.
Apesar de um encontro com o líder americano ser desejado por membros do governo —ele seria uma maneira de reforçar o argumento de que o Brasil na verdade não enfrenta um isolamento internacional—, a foto com o democrata é vista por membros da pré-campanha do presidente como algo de pouco valor eleitoral. Isso porque Bolsonaro é aliado declarado do antecessor de Biden, Donald Trump.
Durante a campanha americana, em 2020, o brasileiro disse que torcia pela reeleição do republicano. Mesmo depois de a vitória de Biden ser confirmada, Bolsonaro repetiu teorias trumpistas de que o resultado teria sido fraudado —o governo americano nunca encontrou qualquer indício disso— e foi um dos últimos líderes a cumprimentar o democrata.
Procurado, o Itamaraty disse apenas que a viagem do presidente para a Cúpula das Américas “está sob avaliação e não está confirmada”.
A reunião, que chega neste ano à 9ª edição, é realizada desde 1994 e reúne 35 países para tratar de assuntos políticos, diplomáticos e comerciais. Na última cúpula, em 2018, Trump não viajou a Lima e se tornou o primeiro líder dos EUA a faltar ao encontro.
A ideia do governo Biden era usar o evento para expressar a mensagem de que os EUA voltaram a dar atenção à América Latina após os atritos do antecessor com nações da região. A organização titubeante, porém, tem acumulado desgastes diplomáticos e dá sinais de que os planos podem ser frustrados.
Nesta semana, os presidente do México e da Bolívia, os esquerdistas Andrés Manuel López Obrador e Luis Arce, condicionaram sua participação no evento a convites aos líderes de Cuba, Nicarágua e Venezuela —os regimes ditatoriais são considerados párias por Washington.
“Se excluem, se não convidam a todos [os líderes do continente], irá uma representação do governo do México. Eu não iria”, disse o mexicano AMLO em entrevista. O boliviano tuitou nesta terça (10): “Uma Cúpula das Américas que exclui países americanos não é uma Cúpula das Américas por inteiro. Se a exclusão persistir, não participarei”.
Autoridades americanas já indicaram que o evento pode priorizar regimes democráticos, cortando da lista as comitivas cubana, nicaraguense e venezuelana.
Caso Bolsonaro confirme a intenção de faltar à reunião, a tendência é que o governo envie o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) como representante, além do chanceler Carlos França. Nesse cenário, os líderes das duas maiores democracias latino-americanas estariam ausentes, o que tende a enfraquecer os planos de Biden de mostrar a renovada liderança em temas do hemisfério ocidental.
Interlocutores ouvidos pela Folha relataram ainda outras circunstâncias que colocam em dúvida a viagem do presidente a Los Angeles.
No início de maio, a agência Reuters divulgou que o diretor da CIA (agência de inteligência dos EUA), William Burns, disse a autoridades de alto escalão do governo brasileiro que Bolsonaro deveria parar de lançar dúvidas sobre o sistema de votação. O presidente e o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) negaram que uma mensagem do tipo tenha sido transmitida durante a visita do americano a Brasília, em julho do ano passado.
Bolsonaro comanda uma campanha de desinformação sobre as urnas eletrônicas e vem questionando em diferente ocasiões, sem apresentar provas, a segurança do sistema. As ações são consideradas uma tentativa de tumultuar o pleito, abrindo caminho para que ele questione o resultado caso saia derrotado.
Pessoas que acompanham o tema dizem que a divulgação de que os americanos estariam cobrando Bolsonaro a não interferir na eleição foi mal recebida pelo governo. Assessores argumentam que, no caso de uma reunião bilateral, seria provável que Biden renovasse uma cobrança do tipo —o que, mesmo em termos genéricos, seria mais combustível para os opositores do presidente.
Do lado americano, interlocutores dizem sob condição de anonimato que o governo Biden não tem intenção de criar constrangimentos. As relações entre os dois líderes têm um histórico de atritos, ainda que eles nunca tenham se encontrado pessoalmente nem se falado por telefone.
O americano também já manteve conversas com outros presidentes da região, como AMLO, Alberto Fernández (Argentina) e Iván Duque (Colômbia), enquanto o brasileiro tem hoje poucos aliados locais.
Em agosto de 2021, Bolsonaro chegou a dizer que Biden tem “quase uma obsessão pela questão ambiental” e que isso “atrapalha um pouquinho” o governo.
Apesar de as relações entre os presidentes estarem congeladas, os governos têm tentado manter uma agenda de contatos entre autoridades. Além de Burns, visitaram o Brasil nos últimos meses o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, e a subsecretária para assuntos políticos do Departamento de Estado, Victoria Nuland.