Presidente e chanceler perdem abertura do evento; Biden vai abordar eleições democráticas e transparentes na reunião bilateral
O Globo – Depois de o presidente Jair Bolsonaro ter reiterado, na terça-feira, suas infundadas suspeitas sobre fraude na eleição presidencial americana de 2020, voltaram a pairar sobre a IX Cúpula das Américas — que começou oficialmente quarta-feira sem a presença do chefe de Estado brasileiro — dúvidas sobre a eficácia de sua presença em Los Angeles. Em meio a certo nervosismo e muita curiosidade entre outras delegações, o governo brasileiro confirmou que o presidente estará no evento nesta quinta-feira. Ele terá a companhia do chanceler Carlos França, que não participou, no quarta, de um encontro de ministros convocado para definir os acordos que serão assinados pelos chefes de Estado. O Brasil, frisaram fontes diplomáticas, participou ativamente de todos os debates. Mas, por parte da ala política do governo, começando pelo presidente, a importância dada ao encontro foi muito inferior à demonstrada por outros países.
Até quarta-feira, quando vários chefes de Estado já circulavam por Los Angeles — alguns dos quais, como o chileno Gabriel Boric e o equatoriano Guillermo Lasso, chegaram à cidade no começo da semana — o Brasil esteve representado apenas por diplomatas: o embaixador na Organização dos Estados Americanos (OEA), Otávio Brandelli; o embaixador em Washington, Nestor Forster; o embaixador Michel Arslanian, diretor do Departamento de Mercosul e Integração Regional do Itamaraty; e, pelo Ministério da Economia, o secretário de Comércio Exterior, Lucas Ferraz (o ministro Paulo Guedes confirmou há algum tempo que não participaria do evento).
Pela mesma razão que Bolsonaro cogitou não viajar a Los Angeles — o foco na campanha eleitoral brasileira — o presidente será um dos últimos chefes de Estado a desembarcar nos Estados Unidos. Fontes do governo, no entanto,consideram razoável o tempo que o presidente estará na cúpula (menos de 48 horas), frisando que “Bolsonaro e França estarão nos momentos realmente importantes”.
Evento cultural
A cerimônia de quarta-feira, na qual o presidente Joe Biden e a primeira-dama, Jill, deram as boas-vindas aos líderes do continente, foi considerada pelo governo brasileiro um evento cultural sem grande relevância. Aliado do então presidente republicano Donald Trump, Bolsonaro foi um dos últimos líderes mundiais a cumprimentar Biden por sua eleição em 2020, 38 dias após a vitória do democrata.
As mesmas fontes ressaltaram a ativa participação do Brasil na discussão dos documentos que serão assinados pelos chefes de Estado sobre democracia, direitos humanos e migração, entre outros temas. O texto sobre democracia e direitos humanos abordará, segundo O GLOBO apurou, temas como eleições, liberdade de imprensa, respeito às instituições, a minorias, combate à corrupção, desenvolvimento econômico, superação da pobreza.
Haverá outro documento sobre desenvolvimento sustentável que incluirá compromissos sobre transição energética, redução de emissões de gases de efeito estufa. Também estava sendo redigido um texto sobre o que se chamou de futuro verde, no qual se fala de combate às mudanças climáticas, proteção de florestas, transferência de tecnologias e financiamento e a importância da biodiversidade. A questão da migração, considerada prioritária pelos EUA, é tratada em outro acordo, do qual o Brasil também participou.
Na reunião bilateral entre Biden e Bolsonaro, prevista para esta quinta-feira, com duração de 35 minutos, há expectativa, confirmaram fontes do governo, de que os presidentes conversem sobre os temas tratados no âmbito da cúpula, entre eles a preparação para enfrentar pandemias, a recuperação econômica pós-Covid-19, o fortalecimento da democracia na região, desenvolvimento sustentável e energias limpas.
Nove presidentes ausentes
Na esfera bilateral deverá ser abordado também o impacto do conflito na Ucrânia no suprimento de fertilizantes e seu efeito sobre a segurança alimentar global.
O conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, disse que “não há restrição de tema em nenhum encontro bilateral do presidente [Biden], inclusive com o presidente Bolsonaro”.
— Posso adiantar que o presidente discutirá eleições democráticas abertas, livres, justas e transparentes — declarou Sullivan.
Representantes da Casa Branca frisaram a importância de destacar a agenda de conteúdos da cúpula, apesar das notáveis ausências de chefes de Estado de peso, entre eles o mexicano Andrés Manuel López Obrador. Entre excluídos (Cuba, Venezuela e Nicarágua), presidentes que não viajaram por testar positivo para a Covid-19 (o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou), e chefes de Estado que decidiram não estar presentes (de México, Bolívia, Honduras, Guatemala e El Salvador), nove países latino-americanos não terão representantes de alto nível na cúpula.
Em seu discurso na abertura da cúpula, o presidente Biden minimizou quarta-feira as divergências entre os participantes:
— Nem sempre vamos concordar com tudo. Mas porque acreditamos na democracia, nós resolvemos nossas diferenças com diálogo e respeito — disse ele.
Em entrevista à EVTV de Miami, a porta-voz do Departamento de Estado Cristina Rosales afirmou que “o importante é que queremos que se fale sobre o que vai acontecer na cúpula e não apenas em quem vem e quem não vem”.
— Não temos o número fechado (de participantes). Alguns países não foram convidados porque não cumprem a Carta Democrática Interamericana, selada na cúpula de Quebec, em 2001, não apoiam eleições livres, não respeitam os direitos humanos… Mas teremos representantes não governamentais participando em vários foros —explicou a porta-voz.
‘O pior momento’ regional
Na avaliação da especialista em relações internacionais Guadalupe González, do Colégio do México, esta cúpula “é a pior da História (desde sua criação em 1994), por razões ruins”.
— Nunca houve tão pouco diálogo, e isso reflete a fragmentação que assola a região e o abandono em matéria de cooperação, que não é de hoje, mas vivemos o pior momento — frisa a especialista.
Para Guadalupe, o encontro em Los Angeles pode ser um divisor de águas, ou mais um passo no processo de deterioração das relações entre os EUA e a região:
— Poderia ser o começo da reconstrução de espaços de diálogo — especula.
A cúpula, conclui a especialista, exibe também uma falta de lideranças. Segundo ela, “o México está ausente, o Brasil não representa ninguém, a Venezuela foi excluída”.
— Vejo como uma possível nova liderança o presidente do Chile, que poderia ser uma ponte entre os que querem incluir todos [México e Argentina] e os que defendem a exclusão de ditaduras — concluiu Guadalupe, que considerou promissora a articulação entre Boric e o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau.