Relações entre ditadura e ilha autônoma que considera sua se deterioram ao longo do ano
Folha de São Paulo – A China quase que dobrou o número de incursões com aviões de combate contra a zona de defesa aérea de Taiwan em 2022, ano em que aumentou brutalmente a pressão militar sobre a ilha autônoma que considera sua.
Segundo a base de dados da agência de notícias francesa AFP, alimentada pelas atualizações diárias do Ministério da Defesa de Taipé, foram 1.727 aeronaves chinesas enviadas em direção ao vizinho, passando pela Adiz (sigla inglesa de Zona de Identificação de Defesa Aérea) taiwanesa.
Em 2021, haviam sido 960, número por sua vez duas vezes e meia maior do que as notificações de 2020, que somaram 380.
Os dados da movimentação militar ilustram a mudança política em Pequim nos últimos anos, com o cada vez mais assertivo regime liderado por Xi Jinping buscando deixar claro que está disposto a tomar a ilha à força, ainda que diga ter como prioridade uma reincorporação pacífica.
No ano passado, os dados foram fortemente influenciados pelo auge da tensão do ano: a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, a Taipé. A partir dali, o regime de exercícios militares e incursões chinesas em torno da ilha é quase permanente.
Só em agosto, mês da visita de Pelosi, foram 440 incursões. A maior mobilização aérea da história do conflito entre China e Taiwan, que remonta à fuga da liderança derrotada pela revolução comunista de 1949 para a ilha, ocorreu em 25-26 de dezembro, quando 71 aeronaves estiveram no ar —mais da metade delas cruzando a fronteira virtual entre os territórios, o que não é aferido na base da AFP.
Quando isso acontece, e também em ocasiões nas quais a trajetória de caças, bombardeiros e aviões de reconhecimento sugira uma linha rumo direto à ilha, Taiwan é obrigada a enviar aeronaves de interceptação.
Segundo observadores militares, o custo para colocar 1 dos seus 150 F-16 que usualmente são usados para a missão é equivalente a R$ 140 mil por hora, levando a gastos astronômicos no sempre dilatado orçamento militar da ilha. Além disso, a atividade vai desgastando os aparelhos.
Aí entram os Estados Unidos, fiadores do regime de Taipei. A incursão de dezembro foi justamente uma resposta à aprovação do orçamento de defesa americano pelo Congresso, com a previsão de fornecimento de US$ 10 bilhões em armas, como novos caças, para os taiwaneses em cinco anos.
É um exemplo claro da ambiguidade americana. Desde 1979, quando reconheceu a China comunista, Washington também aceita o princípio de que só há um país com esse nome. Com efeito, nunca apoiou o pleito de independência de Taiwan, que só é reconhecido por 13 países.
Ao mesmo tempo, estabeleceu mecanismos de cooperação militar para dissuadir os chineses de invadirem o território —o mais importante deles, a promessa de que os EUA entrariam numa guerra ao lado da ilha. De tempos em tempos, um gesto político mais explícito como a visita de Pelosi, inédita para alguém em seu cargo em 25 anos, faz escalar as tensões.
O tom geral, contudo, mudou desde 2017, quando Donald Trump disparou no campo comercial a Guerra Fria 2.0 com os chineses, que se espraiou para toda possível fronteira contenciosa, da autonomia de Hong Kong ao manejo da pandemia, da venda de microchips à liberdade de navegação no Indo-Pacífico.
Taiwan se viu no centro do embate, e seu Exército afirma que até 2024 a China estará tecnicamente pronta para uma invasão. O efetivo bloqueio aeronaval ensaiado na esteira da visita de Pelosi já insinua o plano.
No Ocidente, a aliança entre a China e a Rússia de Vladimir Putin, que não é formalmente militar mas tem um forte componente de defesa, causou o temor de que Xi fosse se inspirar na Guerra da Ucrânia para atacar Taiwan.
O próprio presidente americano, Joe Biden, alertou o líder chinês a não tomar esse rumo. Nada aconteceu, mas o frenesi de aviões e navios chineses em torno do território mostra que a retórica tem eco na prática.
Na véspera do ano novo, por exemplo, 24 caças e bombardeiros foram mobilizados em um exercício captado na Adiz, e 15 deles cruzaram a chamada linha mediana sobre o estreito de Taiwan.
A Adiz é uma zona em que forças aéreas exigem a identificação de aeronaves, civis ou militares, por considerar que dali em diante elas representam algum perigo. Cerca de 20 países as têm, e muitas se sobrepõem, como a taiwanesa, a chinesa e a sul-coreana.
Ela não é, contudo, o espaço aéreo formal, ou informal no caso da semi-reconhecida Taipé. Nele, havendo invasão, as regras de engajamento preveem escolta, alerta, tiro de advertência e abate, numa escada crescente.
Em 2022, houve grande atividade de caças de Pequim: dos 1.727 aviões mobilizados, 1.241 eram do tipo. Em 2021, haviam sido 538 decolagens. Já incursões de bombardeiros, geralmente os H-6K com capacidade empregar armas nucleares, passaram de 60 para 101.
Uma novidade foi a estreia de drones nessa contagem. Houve 71 incursões com esses modelos não tripulados, todas depois da visita provocativa de Pelosi.
Isso tem se espalhado: no domingo (1º) e na segunda (2), o Japão enviou caças para interceptar voos de drones de reconhecimento de alta altitude chineses WZ-7, considerados os maiores do gênero do mundo.