Decisão combina ‘ciência’ e ‘arte’ e não depende de um único homem, como vem afirmando o presidente da República
Estadão | Diante das críticas recorrentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à política de juros altos do Banco Central (BC), estendidas ao presidente da instituição, Roberto Campos Neto, chamado por ele de “esse cidadão”, parece que é possível resolver o problema com uma canetada. É só Campos Neto querer “ajudar o Brasil”, como afirma o presidente, e pronto.
Mas, ao contrário do que Lula diz, a taxa básica de juros (Selic) fixada pelo BC, que é usada como referência no mercado, não é obra de “um único homem”. Nem é definida na base do “achômetro”, a partir de uma avaliação superficial da realidade. “A Selic não é uma coisa que caiu do céu” afirma a economista Sílvia Maria Matos, coordenadora do Boletim Macro Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), ligado à FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Embora a economia não seja considerada uma ciência exata, há toda uma racionalidade, ancorada em estudos acadêmicos, nas práticas de mercado, nos resultados alcançados historicamente pela política monetária e na experiência de bancos centrais de outros países, por trás da calibragem da Selic pelo BC.
Viés político
Ainda que Lula, o PT e muitos de seus aliados defendam a ideia de que a definição dos juros é uma questão política e critiquem a autonomia do BC, aprovada pelo Congresso e implementada em fevereiro de 2021, a medida reforçou o caráter essencialmente técnico da instituição, ao blindá-la de pressões que possam colocar em risco o controle da inflação e a estabilidade econômica.
Por não ter reduzido ainda a Selic para turbinar a economia, como desejava Lula, autoridades do governo e correligionários do presidente chamaram Campos Neto de “bolsonarista” e o acusaram de trabalhar contra o governo. Até agora, porém, Campos Neto não deu sinais de que “subiu no palanque” e deixou de lado o compromisso de zelar pela estabilidade monetária do País.
“Se o Banco Central tivesse viés político, teria reduzido a Selic durante o período eleitoral, para beneficiar o presidente Jair Bolsonaro, que era candidato à reeleição”, diz um economista ouvido pelo Estadão que prefere se manter na sombra. “Todo mundo lá no Banco Central está tentando, dentro de suas limitações, acertar o que vai acontecer, para manter a inflação sob controle com o menor custo possível para o País e para a população.”
Para calibrar a Selic e cumprir sua missão constitucional de levar a inflação – estimada em 5,9% em 2023 – para a meta de 3,25% ao ano, com tolerância de 1,5 ponto porcentual para cima ou para baixo, o BC se escora num arsenal de dados sobre tudo – ou quase tudo – que já ocorreu e que está ocorrendo na economia – na esfera governamental, no mundo dos negócios e na vida financeira dos indivíduos.
Contas públicas
Como os gastos do governo têm um impacto significativo na demanda e consequentemente na inflação, a instituição dedica especial atenção às contas públicas. Se os juros estiverem altos, mas a inflação não cair, é sinal de que alguém, no caso o governo, está indo na contramão, gastando mais do que pode, e de que o BC terá de elevar ainda mais a Selic para ser efetivo no combate à alta de preços.
Até indicadores sobre a situação da economia global, como o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) de diferentes países, as taxas de juros praticadas lá fora e a variação dos preços internacionais do petróleo, que podem alterar o cenário econômico no País, entram no radar.
“É um banho gigante de informações para entender claramente o que está acontecendo e para onde as coisas estão indo”, afirma o economista Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor de Política Monetária do BC e hoje presidente do conselho de administração da Jive Invesments.
O processamento desse enorme volume de dados é feito por meio de modelos econométricos, com até 80 equações, que levam em conta a correlação teórica existente entre os diferentes indicadores, a inflação e os juros, e por modelos que consideram as relações puramente estatísticas dos dados.
Projeções
Cada um à sua maneira, eles apresentam um quadro detalhado da economia nacional, traçam cenários para o futuro e realizam projeções das taxas necessárias para trazer a inflação para a meta em diferentes períodos – quatro, cinco ou seis trimestres, por exemplo. Pelos modelos, é possível estimar qual será o efeito que uma alta de 0,5 ponto porcentual ou uma queda de 0,75 ponto na Selic terá na demanda e na inflação ao longo do tempo.
Desenvolvidos por notáveis da academia e adotados também, com os devidos ajustes, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Federal Reserve (banco central dos EUA), entre outras instituições, esses modelos foram adaptados para o Brasil e cumprem hoje um papel fundamental para balizar a definição da Selic pelo BC. Compartilhados pela instituição com a sociedade, eles são reproduzidos pelos economistas nas universidades e no mercado financeiro e dão uma boa dose de previsibilidade para a política monetária.
“Há todo uma arcabouço teórico que sustenta o uso de cada modelo e as hipóteses sobre o comportamento futuro das variáveis”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos. “A teoria econômica indica que há determinadas variáveis que são importantes para gerar inflação e que os juros são o instrumento usado para inibir a demanda e reduzir o ritmo da alta de preços
É essa racionalidade aplicada na definição da Selic que dá credibilidade às decisões do BC e passa para a sociedade a mensagem de que a instituição está no caminho certo. Sempre que o BC se desviou dessa lógica, recorrendo a bruxarias heterodoxas ou cedendo a pressões políticas para reduzir os juros, nos tempos em que sua autonomia ainda era uma quimera, deu ruim. Mesmo que, no curto prazo, tenha havido uma sensação de melhora na situação, no médio e no longo prazo a conta acabou chegando, com a alta da inflação, e sobrando para todo mundo, em especial para os mais pobres.
‘Cavalo de pau’
Foi o que aconteceu, por exemplo, no governo Dilma 1, em 2011, quando o então presidente do BC, Alexandre Tombini, cedeu às pressões políticas e cortou as taxas para tentar alavancar a economia, na direção oposta da que apontavam os modelos usados na época pelos economistas. “O cavalo de pau do Tombini, que foi contra tudo o que estava escrito e que se projetava virou um case no mercado”, afirma Sílvia, do Ibre.
Com a guinada inesperada nos juros, as incertezas sobre os rumos da economia se multiplicaram, a credibilidade da política monetária foi para o ralo e a inflação – alavancada pela injeção de bilhões de reais do Tesouro na praça, por meio dos bancos públicos – passou dos dois dígitos, sem pandemia, sem desarranjo nas cadeias produtivas e sem guerra na Ucrânia. A fatura fechou com a maior recessão de que se tem notícia em todos os tempos no País, com uma queda de quase 7% no PIB, em 2015 e 2016, mais do que o dobro dos 3,3% de retração registrados em 2020, no auge da pandemia.
oi o que aconteceu também, em escala amplificada, na Venezuela, na Argentina e na Turquia, onde os juros permaneceram baixos, enquanto os gastos públicos explodiam, e a inflação disparou. “Quando o Banco Central resolve ser rebelde em relação ao que os modelos dizem, ao que os fundamentos econômicos dizem, as consequências são dolorosas”, diz Sílvia. “É como um médico que usa um tratamento alternativo para tratar o câncer de um paciente e no fim o tumor acaba virando metástase.”
É certo que, dependendo das premissas consideradas para “rodar” os modelos, as projeções para a Selic podem apresentar variações. Uma casa bancária, por exemplo, pode estimar que, em dezembro deste ano, a taxa básica estará 13% ao ano. Outra pode dizer que ela ficará estável ou vai até subir, para 14,25% ao ano. De vez em quando, também aparece por aí alguém que vai contra o chamado “consenso de mercado”, ao detectar alguma tendência que os outros ainda não identificaram. Mas, no geral, não há grandes dispersão nas estimativas de inflação e dos juros.
Apesar de darem uma contribuição relevante ao processo de tomada de decisão, os modelos matemáticos também não são infalíveis. Servem principalmente para organizar as informações, projetar cenários e mostrar se a política monetária está no caminho certo – ou não.
Expectativas
Na hora de definir a taxa, é a capacidade de análise e de julgamento do presidente e dos diretores do BC, que formam o Copom (Comitê de Política Monetária), a quem cabe efetivamente definir a Selic, que conta. “Tem muita ciência, muita matemática, mas tem também muito do que o pessoal chama de ‘arte’. É uma composição das duas coisas”, afirma Luiz Fernando Figueiredo.
Segundo ele, nas reuniões do Copom, realizadas a cada 45 dias, também se avalia a percepção do mercado, a partir das pesquisas realizadas pelo BC cem economistas dos bancos e das universidades, e as expectativas dos empresários e dos consumidores. “As expectativas são muito importantes para entender o que pode acontecer no futuro, tanto do ponto de vista da atividade econômica quanto da inflação e dos ativos financeiros”, diz. “No fim, a gente vive de expectativas.”
Nessa hora, ainda se avaliam as perspectivas para aquelas variáveis que tornam mais difícil prever o comportamento da economia, como a taxa de câmbio e o preço do petróleo, que têm forte impacto na inflação, e se discutem os cenários mais prováveis, para chegar à conclusão sobre a melhor decisão a tomar.
Agora, porém, a percepção de muitos economistas é de que a definição da Selic neste e nos próximos anos vai depender, mais que tudo, do que acontecerá com a situação fiscal do País e do impacto que ela terá na inflação. Em vez dos choques de preços causados por fatores externos, considerados fenômenos transitórios, espera-se que a inflação seja alimentada principalmente pelas despesas sem lastro do governo, com efeitos de mais longo prazo nas contas públicas.
Incertezas
“Nós estamos muito pessimistas. Todas as informações que a gente tem são de aumento de gastos e do déficit público”, afirma José Márcio Camargo. “A inflação continua muito alta, apesar de os juros estarem em 13,75% ao ano, porque a gente tem uma política fiscal expansionista que aumenta a demanda e exige uma política monetária ainda mais contracionista.”
De acordo com Sílvia, do Ibre, Lula criou muitas incertezas em relação à política fiscal, apesar do pouco tempo de governo, ao opor o equilíbrio nas contas públicas à responsabilidade social, torpedear a autonomia do BC, defender a revisão das metas de inflação, pressionar a instituição a baixar os juros e deixar um ponto de interrogação em relação à retomada da política de usar os bancos públicos para alavancar a atividade econômica.
Para completar ainda mais o quadro, o governo ainda implodiu o teto de gastos, que limitava as despesas de um ano aos valores do ano anterior corrigidos pela inflação – um dispositivo que, na avaliação de José Márcio, permitiu a queda dos juros para a faixa de 5% ao ano, antes da pandemia, em 2019, sem interferência política.
“A gente está num limbo em que não há mais confiança no arcabouço fiscal anterior, que era o teto de gastos, e há uma promessa de um novo arcabouço, que por enquanto é só uma promessa”, diz Figueiredo. “O velho já morreu e o novo não nasceu e ninguém sabe se será mais feio, mais bonito e se vai dar para acreditar que vai funcionar.”