Deputados e senadores permitem até doações nas vésperas da eleições
O Globo – Na última semana antes do recesso parlamentar, o Congresso Nacional aprovou uma série de projetos flexibilizando as regras eleitorais, autorizando gastos bilionários e retirando amarras sobre o pagamento de emendas. Os mecanismos beneficiam o governo Jair Bolsonaro e os próprios parlamentares, muitos dos quais tentarão se reeleger em outubro. Parlamentares conseguiram também aprovar uma alteração que permite a doação de “bens, valores ou benefícios” pela administração pública neste ano.
A principal benesse obtida por Bolsonaro foi a PEC Eleitoral, que instituiu um estado de emergência para driblar as restrições da Constituição e autorizar o governo a gastar R$ 41,2 bilhões para conceder benefícios a menos de três meses das eleições. Ela foi aprovada pela Câmara dos Deputados nesta quarta-feira e promulgada pelo Congresso Nacional na quinta-feira.
Parlamentares conseguiram também inserir um novo drible na lei eleitoral nos projetos que tratavam sobre emendas. Foi aprovada uma alteração que permite a “doação de bens, valores ou benefícios” pela administração pública neste ano, desde que sejam feitas com “encargo”.
A lei hoje proíbe a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios durante o ano eleitoral. Segundo técnicos do Congresso e especialistas ouvidos pelo GLOBO, como a definição de “encargo” é ampla, isso pode ser usado para liberar doação de tratores, cestas básicas e outros bens.
O governo pode doar um trator e exigir que ele seja usado em manutenção de estradas, por exemplo, o que já se trataria de um “encargo”.
— Considero que essa alteração vem num conjunto de transformações que dá a quem já está no poder maior poder político com o uso de bens da própria administração — diz Raquel Machado, professora de direito eleitoral da Universidade Federal do Ceará.
Durante a sessão, o senador Jean Paul Prates (PT-RN), líder da minoria no Senado, disse que as mudanças eram um “jabuti do tamanho de um bonde”. “Jabuti” é o jargão usado no Congresso para se referir a temas que não têm relação com o mérito dos projetos, mas são inseridos de forma oculta nos textos para facilitar sua aprovação sem que os parlamentares percebam.
Nesse caso, o projeto tratava da manutenção da verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e não da lei eleitoral. Na sessão, o deputado Gaguim (Republicanos-TO), relator do texto, defendeu a inserção da previsão sobre doações, dizendo que materiais estão “se depreciando”.
— Só para informar que essas doações são importantes para o país, são materiais que estão se depreciando, que estão se acabando, porque vão fazer com que possam chegar na ponta para quem precisa. Então, acompanhamos o texto — disse, em resposta a Jean Paul Prates.
O presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não deu tempo para que a oposição reagisse. A deputada Erika Kokay (PT-DF) tentou interromper a votação, mas ele encaminhou a aprovação de forma simbólica — sem exigir que os deputados e senadores votassem individualmente — e registrou apenas os votos contrários do Novo, do PT e do PSOL.
A proposta das doações foi apresentada como um “adendo de plenário”, isto é, feito durante a sessão, pelo relator. De acordo com o deputado federal Marcelo Ramos (PSD-AM), permitir que o governo federal faça essas distribuições durante a campanha anula os efeitos da lei eleitoral, que visa trazer equilíbrio entre os candidatos que estão no cargo e os seus desafiantes.
— Esses projetos ampliam o poder do governo durante o período eleitoral e acabam com o equilíbrio de forças entre os candidatos — disse Ramos.
Emendas maiores
Na terça-feira, o Congresso Nacional, em sessão conjunta de deputados e senadores, aprovou ainda dois projetos de lei orçamentários que podem turbinar o orçamento de emendas — e de gastos “livres” do governo em investimentos — e flexibilizar as restrições de gastos em pleno ano eleitoral.
Um dos projetos permite que o governo altere a localidade da execução dos contratos firmados em 2020 com recursos de emendas parlamentares. Ou seja, emendas podem ser pagas em cidades diferentes daquelas para onde o gasto foi autorizado, e poderia ser alterada a fonte dos recursos.
Há ainda a previsão de que possa ser alterado o “credor” dos contratos. Ou seja, uma empresa diferente daquela autorizada pode ser contratada para executar a verba em outro contratado.
Técnicos da Câmara dos Deputados e dos Senado elaboraram notas avaliando que essas alterações violam a Lei Orçamentária atual. Quando é feita uma nota de empenho, ou seja, uma autorização de pagamento, não pode ser alterada a fonte, o credor do contrato ou a destinação.
Se não for possível fazer o pagamento nos anos seguintes de acordo com os termos descritos nos empenhos, as notas devem ser canceladas e o governo perde o direito de usar aquele crédito em “restos a pagar”.
Pressão por apoio
Segundo técnicos do Congresso ouvidos reservadamente pelo GLOBO, essas mudanças fariam, com que na prática, o governo pudesse pressionar os aliados nos estados e municípios a garantir apoio eleitoral sob ameaça de mudarem os contratos caso não o fizessem.
Em outro projeto de lei, as duas Casas legislativas também aprovaram, no mesmo dia, um dispositivo que mantém oculto padrinhos de emendas do relator — que dão base ao chamado orçamento secreto — quando elas forem remanejadas para outra classificação.
De acordo com o texto, o Executivo poderia utilizar os recursos das emendas de relator que não foram executadas como “verbas discricionárias” dos ministérios, ou seja, as que o governo pode decidir como gastar. Nesse caso, o autor dessas emendas de relator “transformadas” em orçamento próprio dos ministérios não precisaria ser identificado.
Parlamentares da oposição denunciam que, na prática, o dispositivo permitirá que governo escolha os repasses de aliados junto ao relator do orçamento no Congresso, remanejando-os para serem considerados emendas discricionárias, e ocultando o nome dos que fizeram as indicações do destino das verbas.
No mesmo dia que os projetos foram aprovados pelo Congresso, o PSOL entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando as proposições. No processo, o partido chama as mudanças de “ilegais e inconstitucionais” e alega que a democracia não pode ser “influenciada por disponibilidade de recursos por parte do governo federal”.
“É inconcebível – e absolutamente ilegal e inconstitucional – que o processo democrático seja influenciado por disponibilidade de recursos por parte do governo federal e que se continuem a não se estabelecer e conhecer quais são os critérios de distribuição das emendas, que permaneçam sem se conhecer, de modo transparente quais são seus autores e quais são seus beneficiários”, diz o documento.