Sub-representatividade feminina se repete em órgãos abaixo do comando do Executivo, Legislativo e Judiciário
Folha de São Paulo – Em quase 40 anos de redemocratização no Brasil, a cúpula da República contou com 66 homens e só 4 mulheres —uma proporção de 16,5 para 1— e continua até hoje comandada majoritariamente por representantes do sexo masculino.
Nesse período, apenas Dilma Rousseff (PT) foi eleita presidente da República, enquanto sete homens passaram pelo comando do Poder Executivo. A petista ainda acabou sendo destituída do cargo em 2016, após sofrer um processo de impeachment mais de dois anos antes do fim de seu segundo mandato.
O Legislativo nunca teve desde a redemocratização uma mulher como presidente da Câmara dos Deputados ou do Senado —foram 18 e 15 ocupantes do posto, respectivamente, nesse período, todos homens.
No Poder Judiciário, só 3 mulheres —contra 26 homens— se tornaram ministras do STF (Supremo Tribunal Federal): Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber. As nomeações ocorreram entre 2001 e 2011.
As duas últimas seguem na corte até hoje, sendo Rosa a presidente do tribunal de 11 ministros e figura feminina que destoa da predominância masculina na corte e nos demais Poderes, sob comando de Luiz Inácio Lula da Silva (PT/Presidência da República), Rodrigo Pacheco (PSD-MG/Senado) e Arthur Lira (PP-AL/Câmara).
Mesmo em cargos abaixo da cúpula do Executivo, Legislativo e Judiciário, a sub-representatividade feminina se mantém.
No Congresso, o cenário repete o de 1985, quando as duas Casas elegeram só uma mulher para cargos de comando nas mesas diretoras. Naquele ano, Eunice Michiles —a primeira senadora do país— foi indicada para a quarta secretaria do Senado.
Em 2023, as senadoras ficaram sem espaço na mesa diretora e apenas a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) conseguiu uma das sete vagas titulares na mesma estrutura na Câmara. Ela será a segunda secretária da Casa.
Um dos avanços veio no fim do ano passado, quando Lula indicou o maior número de ministras da história e escolheu 11 mulheres para o início do governo —no fim da gestão Jair Bolsonaro (PL), havia apenas 1 mulher dentre as 23 pastas.
A situação, porém, ainda segue longe de uma paridade de gênero. As 11 ministras de Lula estão em nítida desvantagem na Esplanada dos Ministérios e representam menos de um terço do total de 37 pastas.
O governo José Sarney começou em 1985 sem nenhuma mulher em seu ministério. A primeira (e única) ministra da gestão foi Dorothea Werneck (Trabalho), nomeada apenas no último ano do mandato.
Na avaliação de Claudia Costin, ex-ministra da Administração Federal e Reforma do Estado do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), criou-se ao longo dos anos um modelo do que seria um profissional competente para assumir altos cargos —em que mulheres e negros na maior parte das vezes não são lembrados.
A ex-ministra pondera que mudanças culturais “levam tempo”, mas afirma que é importante haver pressão da sociedade e o que classifica como intencionalidade do próprio presidente e de membros dos outros Poderes de mudar esse quadro.
“Lula concretamente fez um esforço para nomear mais mulheres [no ministério]. E isso deveria ser natural. [Escolher] uma mulher negra no Supremo [Tribunal Federal] seria emblemático. Não é possível que não tenhamos juristas de renome negras. Tenho certeza que nós temos.”
A coordenadora-geral de pesquisa do Observatório Nacional da Mulher na Política, Ana Cláudia Oliveira, afirma que ocupar posições de comando é fundamental para mudar a cultura de funcionamento dos espaços de Poder.
Ligado à Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, o Observatório tem se debruçado sobre a atuação política das mulheres no âmbito federal, estadual e municipal.
Para Ana Cláudia Oliveira, a participação feminina em cargos de comando provoca não só uma mudança cultural, mas tem também um efeito prático: a inclusão de mais mulheres.
“Quando uma mulher está na mesa diretora ela acaba tendo mais voz para pautar o que vai ser votado em plenário, por exemplo. Ela tem mais voz para decidir que mulheres vão ocupar espaços em comissões, grupos de trabalho, frentes parlamentares”, afirma.
A ex-senadora Rose de Freitas foi a primeira —e única— mulher a conquistar a vice-presidência da Câmara dos Deputados. O feito ocorreu em 2011, quando, então deputada, derrotou os colegas homens que, segundo ela, não estavam acostumados a ver uma mulher na mesa diretora.
“As mulheres às vezes são acossadas a ceder mais espaço para os homens a pretexto de que eles são maioria. Mas não são. Podem ser no contexto do Congresso, mas na sociedade não são”, afirma.
“Os homens têm que entender que não existe democracia de verdade se a mulher não estiver ali falando de economia, políticas sociais, agricultura, questões ambientais”, completa.
No STJ (Superior Tribunal de Justiça), foi só em 1999 que uma mulher chegou ao tribunal, com a indicação da ministra Eliana Calmon. Hoje, só 6 das 33 vagas são ocupadas por mulheres.
Para a presidente da corte, Maria Thereza de Assis Moura, a barreira invisível que ainda impede o acesso de mulheres a altos postos da administração pública é fruto de uma sociedade que segue desigual.
A ministra afirma que iniciativas como a política de Incentivo à Participação Feminina no Judiciário —implementada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2018 para aumentar a participação de mulheres em cargos de chefia— é um exemplo importante e concreto para alcançar a equidade de gênero, mas é preciso mais.
“Precisamos dar o passo seguinte: construir oportunidades e ampliar o acesso aos postos mais elevados. Oferecer as mesmas oportunidades para que as profissionais que têm idêntica qualificação e capacidade sejam reconhecidas no ambiente de trabalho. Mudar essa perspectiva muda a instituição por dentro e serve de exemplo para todos.”
Ao longo de quase 90 anos de existência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), apenas 8 mulheres passaram pelo tribunal. Atualmente, dos 7 ministros efetivos, há apenas 1 magistrada: Cármen Lúcia.
Para a juíza e ex-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Renata Gil, chegar ao STF ou ao STJ é ainda mais difícil para as mulheres porque elas já costumam estar excluídas do ambiente político onde os nomes dos indicados são costurados.
“Essas escolhas são baseadas não só nos critérios de antiguidade, mas também de merecimento, avaliação social, que acabam sendo dificultadas se a mulher não está presente nesses espaços”, diz.
“A gente tem dificuldade de inclusão de mulheres em listas tríplices —da OAB, do Ministério Público. As mulheres estão alijadas desse processo e precisam se apresentar para serem incluídas, enquanto os homens estão naturalmente incluídos.”