Volume liberado para saques em condições extraordinárias já representa 20% do saldo atual do Fundo
O Globo – Criado há quase seis décadas como uma poupança compulsória dos trabalhadores, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) historicamente só dava acesso aos recursos em caso de aposentadoria, doença grave, compra de imóvel e morte, beneficiando os herdeiros.
O governo de Michel Temer inaugurou, em 2017, o saque extraordinário para todos os cotistas de contas inativas do Fundo como forma de ajudar uma reação da economia cambaleante desde a gestão de Dilma Rousseff com incentivos ao consumo. Diante do mesmo problema, o expediente foi apropriado e turbinado no mandato de Jair Bolsonaro.
Entre 2019 e 2022, o governo já autorizou saques extraordinários do FGTS, que somam ao menos R$ 123,7 bilhões em valores corrigidos, segundo levantamento feito pelo GLOBO. O montante equivale a 20% do saldo total do Fundo no fim de novembro, último dado disponível.
Os últimos avanços do governo sobre o FGTS foram a autorização do saque de até R$ 1 mil de contas inativas por todos os trabalhadores e a possibilidade de mulheres pagarem cursos profissionalizantes e creches para filhos com recursos de suas contas no Fundo.
As medidas foram anunciadas neste ano eleitoral como uma forma de o governo injetar recursos na economia, cuja previsão de crescimento este ano é de menos de 1%.
O total de saques extraordinários no governo Bolsonaro já é mais que o dobro do autorizado por Temer, o equivalente a R$ 58,8 bilhões em valores corrigidos. O governo Bolsonaro foi o que mais usou recursos FGTS para estímulos econômicos e sociais, e o avanço sobre o Fundo deve aumentar.
Isso porque o governo tem criado, por medida provisória — que tem força de lei antes mesmo da apreciação do Congresso —, novas modalidades de saque sem estudos detalhados de seus impactos.
Desde a posse de Bolsonaro, já foram autorizados três saques emergenciais de contas inativas e ativas do FGTS. Em 2019, o intuito era estimular a economia. Em 2020 e 2022, a justificativa foi repetida para minimizar os efeitos da pandemia no orçamento das famílias, que poderiam usar o dinheiro para pagar dívidas.
Saque-aniversário
No fim de 2019, o governo também criou a modalidade saque-aniversário, que permite retiradas anuais pelos cotistas fora das condicionantes originais do Fundo. Além disso, o governo usou parte do lucro da gestão do FGTS, feita pela Caixa Econômica Federal, para cobrir calotes em empréstimos para pequenos empreendedores.
Só a retirada de R$ 1 mil, autorizada neste ano eleitoral e iniciada no mês passado, soma R$ 30 bilhões. Já a de saques do FGTS para mulheres pagarem creches e cursos ainda não tem o impacto no Fundo estimado porque ainda precisa ser regulamentada.
Nos governos de Fernando Henrique, Lula e Dilma não foram autorizadas retiradas das contas do FGTS fora das condicionantes originais do Fundo. Inovações como o uso de parte de recursos nas contas do FGTS para comprar ações da Vale ou da Petrobras não permitiam que o dinheiro viesse para as mãos dos trabalhadores imediatamente.
Poucas flexibilizações foram feitas pelo Congresso nos últimos anos nesse sentido, como permitir o saque em caso de doenças graves ou em localidades que enfrentem situações de calamidade pública.
O FGTS foi criado em 1966 para substituir a antiga estabilidade no emprego para os trabalhadores do setor privado. Além de servir como uma espécie de colchão financeiro em caso de demissões sem justa causa, o Fundo tem a missão instituída por lei de investir os recursos no financiamento de políticas públicas como habitação popular e saneamento básico.
No atual governo, tem prevalecido a leitura de que o dinheiro pertence ao trabalhador, portanto, caberia a ele administrar os recursos.
José Márcio Camargo, economista-chefe do Banco Genial e observador do mercado de trabalho, concorda com essa visão:
— O FGTS é uma poupança forçada. O ideal é que ele acabe, e o dinheiro vá direto para o trabalhador.
Crédito para habitação
No entanto, o uso recorrente dos recursos do FGTS — que não estão sujeitos ao teto de gastos como o Orçamento da União —pelo governo preocupa outros especialistas e representantes do setor da construção civil e dos trabalhadores.
Para o presidente da Câmara Brasileira da Construção (CBIC), José Carlos Martins, ao autorizar vários saques emergenciais, o governo transforma o Fundo em complemento de renda, o que pode ser prejudicial para o próprio cotista:
— O trabalhador, sobretudo de baixa renda, não tem mais dinheiro na conta (do FGTS) para dar de entrada no financiamento de um imóvel. Eles limparam o tacho. Na hora da necessidade, o trabalhador não vai ter. A maior parte das contas têm pequeno valor, elas estão ficando zeradas.
Martins também se preocupa com o fato de os saques emergenciais reduzirem as disponibilidades do Fundo para o financiamento habitacional, o que dificulta os negócios das empresas do setor que ele representa e tende a agravar o déficit habitacional, sobretudo na classes de baixa renda.
Segundo dados da Fundação João Pinheiro, 41,5% do déficit estão concentrados nas famílias com renda de até um salário mínimo e 32,9% na faixa seguinte, até dois. São os segmentos de habitação que mais demandam recursos do FGTS.
Conselho esvaziado
Dados da CBIC mostram que o volume de financiamento habitacional com recursos do FGTS vem caindo desde 2018: o montante passou de R$ 54,1 bilhões para R$ 49,2 bilhões em 2021. O número de unidades caiu de 469,1 mil pra 389,4 mil, no período.
Para Martins, a liberação do FGTS para o pagamento de creche e cursos de formação é perigosa porque abre precedentes para a aprovação de mais de projetos propostos por parlamentares no Congresso para criar outros tipos de acesso aos recursos do Fundo.
Segundo levantamento da Caixa, há cerca de 200 projetos no Legislativo com esse objetivo, com potencial para consumir todo o patrimônio do Fundo se fossem todas aprovadas.
Para Mário Avelino, presidente do Instituto Fundo de Garantia dos Trabalhadores, o saque-aniversário atende aos trabalhadores que precisam de reforço na renda.
Todo ano, no mês de aniversário, eles podem retirar uma parte do saldo e ainda têm a possibilidade de fazer a antecipação desses recursos junto aos bancos na forma de crédito.
Segundo a Caixa, 23,1 milhões de trabalhadores aderiram ao saque-aniversário e já retiram do FGTS um total de R$ 25,6 bilhões.
— Não há motivos para se criar novas modalidades de saque — diz Avelino.
Etevaldo Leitão, representante da Força Sindical no Conselho Curador do FGTS, reclama que o colegiado vem sendo esvaziado no atual governo. O conselho é tripartite: tem representantes do governo, dos trabalhadores e empregadores. No entanto, o Executivo tem a maioria dos assentos e preside a secretaria executiva.
Segundo Leitão, os conselheiros têm sido preteridos das principais decisões envolvendo os recursos do Fundo e ficam sabendo de novas medidas pela imprensa. Nem mesmo o grupo técnico de apoio ao FGTS é consultado com antecedência, diz ele:
— Só falta editar uma medida provisória para extinguir o FGTS, uma conquista dos trabalhadores há vários anos.
O Ministério do Trabalho não respondeu aos pedidos de entrevista do GLOBO.