Ex-governador e esposa são sócios de contratadas para divulgar publicidade oficial, mas negam conflito legal
Folha de São Paulo – Conglomerados de rádio ligados a Renan Filho (MDB), governador de Alagoas entre 2015 e abril deste ano, receberam pelo menos R$ 1,2 milhão nos últimos dois anos para veicular propagandas do governo estadual, mostram notas fiscais obtidas pela Folha.
O montante foi pago entre janeiro de 2020 e outubro de 2021, quando Renan Filho, que é filho do senador Renan Calheiros (MDB), ocupava o governo do estado —ele renunciou ao cargo em abril para concorrer ao Senado nas eleições de outubro.
As empresas contratadas são o Sistema Costa Dourada de Radiodifusão (responsável, dentre outras rádios, pela retransmissora da CBN em Maceió), o Sistema Alagoano de Radiodifusão e a Rádio Correio de Alagoas, ou Rádio Manguaba. As duas primeiras detêm mais de uma frequência no estado.
O dinheiro não foi pago diretamente pelo governo do estado. As notas foram emitidas por três agências de propaganda (Novagência, Duck Propaganda e Chama Publicidade, todas com sede em Alagoas), contratadas pela Secretaria de Comunicação de Alagoas.
Os recursos foram pagos pelas agências a essas e outras rádios do estado para veiculação de material publicitário do governo estadual.
Questionada sobre os pagamentos a rádios ligadas a Renan Filho, a Secretaria de Comunicação de Alagoas afirmou que as agências de propaganda foram licitadas e que não têm nenhuma ligação com as empresas de rádio.
“As agências contratadas adotaram o critério de trabalhar com todas as emissoras de rádio, cabendo ao governo observar a lei e não se relacionar com as empresas de comunicação em atividade no estado. Quem se relaciona com os veículos são as agências de publicidade, que decidem, por critério técnico de relevância, onde divulgar a propaganda oficial”, afirmou a pasta, em nota.
Apesar de não haver relação direta entre a contratação dos serviços e a destinação da verba às empresas ligadas a Renan Filho, notas fiscais emitidas pelas rádios às agências apontam a Secretaria de Comunicação como “cliente”.
A reportagem obteve notas emitidas tanto pelas agências quanto pelas rádios, atestando o serviço prestado. Elas constam em um processo judicial aberto pelo deputado estadual Davi Maia (União Brasil) contra o governo para averiguar contratos de publicidade.
Maia é candidato na eleição indireta que vai escolher um governador-tampão para comandar o estado até 31 de dezembro, já que Renan Filho e o seu vice renunciaram aos seus cargos.
Segundo dados da Receita Federal, Renan Filho aparece como sócio da Costa Dourada e da Manguaba. Sua esposa, Renata Calheiros, consta como sócia do Sistema Alagoano e como administradora nas outras duas empresas.
Também consta como sócio da Rádio Manguaba Luciano Barbosa, que foi vice-governador de Renan Filho e desde 2021 é prefeito de Arapiraca (128 km de Maceió). Outro sócio da rádio é José Queiroz de Oliveira, atualmente assessor especial na Secretaria de Educação.
Segundo o deputado Davi Maia, o pagamento de verbas de propaganda do governo do estado a empresas de comunicação ligadas ao governador demonstra indícios de improbidade administrativa e crime de responsabilidade.
Renan Filho, por sua vez, respondeu que a afirmação de Maia “ignora a legislação sobre esse assunto”.
“Conforme o disposto na legislação nacional pertinente, quem contrata os serviços dos veículos são as agências licitadas, empresas de capital privado que decidem por critério técnico onde veicular as peças publicitárias. O governo do estado não negocia, não escolhe, nem se relaciona com os prestadores de serviços de comunicação. Não há conflito legal”, afirmou o ex-governador.
Ediberto Júnior, diretor-executivo que responde pelas três rádios, também argumentou que não há conflito ético ou legal na contratação das rádios.
Procuradas, as agências de publicidade Novagência Propaganda e Chama Publicidade informaram que a distribuição de peças publicitárias é feita mediante critérios como audiência, penetração por perfis de público e alcance em regiões específicas e de interesse para o público-alvo da peça exibida.
“São centenas meios de comunicação atendidos, não cabendo à agência análise e opiniões sobre quadro societário e atividade gerencial das empresas, e sim a força de mídia e retorno publicitário que elas proporcionam”, informou a Novagência.
A Chama Publicidade também destacou que “a análise do quadro societário dos veículos não deve ser considerada nem para autorizar, nem para impedir uma veiculação governamental”. A agência Duck Propaganda também foi procurada, mas não respondeu.
A Constituição prevê restrições a deputados federais e senadores (Renan Filho é pré-candidato ao Senado), que não podem firmar e manter contratos diretos com a administração pública ou ser concessionários de serviços públicos.
Senadores e deputados são responsáveis por aprovar e por fiscalizar concessões de emissoras de rádio e televisão outorgadas pelo governo federal.
“A concessão é uma ação do Executivo, mas a aprovação é do Congresso. Seria muito estranho um parlamentar aprovar ou fiscalizar uma concessão de uma emissora da qual ele faz parte”, diz Carlo Napolitano, professor de Comunicação da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Vera Chemin, advogada constitucionalista com mestrado em administração pública pela FGV/SP, lembra que a legislação prevê que gestores públicos podem ser sócios de meios de comunicação, desde que na condição de cotistas, como no caso de Renan. Mas diz que seria recomendado que rádios em tal condição não prestassem serviço publicitário ao governo de seu dono.
“Tal conduta remete, inevitavelmente, a uma grave afronta à moralidade administrativa quando envolve pagamentos para a veiculação de campanhas de governo com a participação de veículos de comunicação de propriedade do agente político, independentemente de a lei permitir”, afirma.
Diana Nascimento, mestre em direito e sócia no escritório Amaral e Lewandoskwi Advogados, afirma que a legislação define que é necessário prevenir casos de possível conflito de interesse para cargos do Poder Executivo federal, e que é necessário que o mesmo seja adotado nos casos estaduais.
Ela lembra que a Lei de Improbidade Administrativa, em seu artigo quinto, veda a prática de “atos que beneficiem pessoa jurídica em que participe o próprio agente público, seu cônjuge ou parentes (até o 3º grau)”.
Desde 2015, o Ministério Público Federal instaurou uma série de inquéritos e moveu ações civis públicas na Justiça Federal questionando as concessões em nome de parlamentares.
Parte dos políticos, contudo, tem adotado a estratégia de repassar suas cotas de sociedade para filhos, irmãos, pais ou aliados políticos. Em muitos casos, o político continua sendo o dirigente de fato da empresa, mesmo sem constar como sócio ou diretor da emissora.
Outro problema, diz o professor Carlo Napolitano, é a concentração das emissoras nas mãos de um ou poucos donos. “Isso gera um problema político sério. Em muitas cidades, há um monopólio ou oligopólio com emissoras sendo controladas por poucos grupos”.