Novos governantes costumavam ter um voto de confiança de eleitores e tomadores de decisão em início de governo, mas contexto global de acirramento político tem forçado os mandatários a ‘mostrar as cartas’ mais cedo.
G1 – Os primeiros 100 dias de governo são conhecidos como uma espécie de “lua de mel” entre o político que chega a um cargo e seu eleitorado. Mas o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não desfruta do tradicional tempo de tranquilidade, em especial na economia.
Analistas de mercado e economistas ouvidos pelo g1 reconhecem que a cobrança é mais intensa que a média — visto que, a rigor, o mandato começou há apenas 20 dias —, mas atribuem parte da culpa aos sinais dúbios do presidente e de seus novos ministros.
Certa forma, o que antecipou a pressão contra o governo Lula foi a completa abdicação de um processo de transição da gestão de Jair Bolsonaro (PL) depois da derrota nas urnas.
Foram os ministros de Lula que tomaram a frente das negociações para remendar o orçamento enviado ao Congresso Nacional pelos bolsonaristas. O documento não previa recursos para o funcionamento de programas básicos em 2023, entre eles o Farmácia Popular e o Bolsa Família de R$ 600.
Antes mesmo de subir a rampa do Palácio do Planalto, Lula precisou gastar capital político para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que desafogou os recursos para o funcionamento do estado e garantiu o aumento permanente do antigo Auxílio Brasil — uma promessa de campanha de ambos os candidatos.
“É como se esses 100 dias — e o desgaste que vem junto — fossem antecipados. Foi uma equipe de transição que teve que negociar pautas e aprovar PEC sem estar na cadeira”, diz Carla Argenta, economista-chefe da CM Capital Markets.
Ao mesmo tempo, pegou mal o desdém petista com agentes econômicos. O mercado financeiro se sentiu atacado no primeiro discurso do presidente eleito na sede do governo de transição, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A indisposição veio em formato de disparo do dólar e bolsa em queda.
Ficou “engasgada” também a promessa do petista de acabar com o teto de gastos antes mesmo de apresentar uma alternativa. E a indicação de Aloizio Mercadante como presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não agradou.
O economista e ex-diretor do Banco Central Tony Volpon faz uma analogia com um jogo de tênis, e chama as decisões de Lula de “erros não forçados”. Para ele, as declarações não trouxeram pistas sobre os planos de governo e serviram apenas para dar um tom “beligerante” (conflituoso) à relação com os agentes econômicos.
“O mercado sempre vai ficar na defensiva com um governo de esquerda. Se você dá razão para essa defensiva, há um preço que vem em forma de aumento de juros. Isso tem um custo para a economia, para o Tesouro”, diz Volpon.
Por outro lado, o economista também lembra que o mercado projetou expectativas irreais quanto à pauta de gastos sociais e montagem da equipe econômica do novo governo.
“Quebra de expectativa é quando se espera algo provável, mas que não acontece. Era extremamente improvável que o ministro da Fazenda não fosse um quadro do PT, por exemplo”, afirma.
Sem trégua
Ao menos quatro planos do governo estão, desde a eleição, sob escrutínio intenso dos investidores: o reajuste do salário mínimo, a ampliação do Bolsa Família para R$ 600, a eliminação do teto de gastos como âncora fiscal do país e a ampliação da isenção do Imposto de Renda para salários até R$ 5 mil.
As medidas fazem parte de um plano de reforço de resgate social do novo governo, que define a empreitada como forma de “colocar o pobre no orçamento”. O mercado torce o nariz porque as medidas geram aumento das despesas do governo, e há expectativa de que seja criada uma compensação para financiá-las sem comprometer ainda mais as contas públicas.
Em entrevista nesta semana à GloboNews, Lula comentou a questão. Perguntado se via responsabilidade fiscal e social como antagônicas, o presidente disse que “são antagônicas por causa da ganância das pessoas mais ricas”.
“O que nós queremos é que haja a contrapartida no social. Não interessa a gente ter uma sociedade de miseráveis. Nós queremos ter uma sociedade de classe média”, disse o petista.
“Os ânimos estavam aflorados dos dois lados. Isso passou e podemos julgar os atos concretos do governo federal”, afirma.
Enquanto o presidente avança no discurso, os agentes financeiros cobram a origem do dinheiro. Após a eleição, chegou-se a um consenso de que seria necessário ampliar a dívida do país para cobrir o momento de emergência, mas a dimensão do pacote gerou ruídos.
Fonte do reajuste do Bolsa Família, a PEC da Transição, que libera R$ 145 bilhões das amarras fiscais, teve seu prazo de vigência reduzido no Congresso Nacional para apenas um ano. A determinação impõe que se encontre um financiamento adequado para o programa nos anos seguintes, o que deve ser rediscutido no Orçamento de 2024.
O tempo é curto, pois, com o fim do teto de gastos, o governo precisará encaixar essa e outras medidas embaixo de uma nova regra fiscal para controlar os gastos públicos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) promete entregá-la até abril — próximo, portanto, ao famoso prazo de 100 dias de governo.
Além do novo “arcabouço fiscal” — nome adotado pelo governo —, Haddad apresentou um plano de aumento de receitas e corte em algumas despesas para fazer frente ao déficit previsto no Orçamento deste ano, de R$ 231 bilhões.
“O próprio ministro reconheceu que só conseguiria entregar cerca de metade desse montante para o ano, o que se aproxima do [valor] que era consenso de mercado. Isso deixa a notícia menos relevante”, diz Paulo Val, economista-chefe da Occam Brasil.
O especialista diz ainda que o pacote prioriza aumento de receita e ataca pouco a despesa pública. “Em um país com o tamanho do gasto que temos, não é o mais adequado. O ajuste precisa vir nas duas frentes. Só pelo lado do gasto, seria muito difícil. E, só pelo lado da receita, seria muito custoso para a sociedade”, explica.
Por fim, Haddad caminha para negociar e votar a reforma tributária ainda no primeiro semestre deste ano. A criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) pretende estimular investimentos no país, restabelecer a competitividade da indústria e melhorar a arrecadação.
“O cenário base, que está no preço do mercado, é um processo de maturação da reforma tributária nesses 100 dias, mas para tramitar e aprovar depois do recesso parlamentar”, diz Carla Argenta, da CM.
A economista pondera, contudo, sobre a capacidade do governo de manter o foco em meio à cena política ainda conturbada em Brasília. Não bastasse o resultado apertado das eleições, que cria uma animosidade logo no início do governo, a invasão terrorista dos prédios dos Três Poderes mobilizou tempo e esforço da alta cúpula de Lula.
“Seria terrível que o assunto travasse a pauta do Congresso, sem deixar as casas votarem as propostas. Seria um desgaste político muito grande e o tempo perdido traria problemas aos indicadores econômicos”, diz ela.
O que vem primeiro?
O g1 procurou o Ministério da Fazenda para aprofundar o cronograma de medidas, mas a pasta não concedeu entrevista.
Em viagem a Davos, para participação no Fórum Econômico Mundial, o ministro Fernando Haddad deu as mesmas pistas que repetia no Brasil: diminuição do déficit, envio de arcabouço fiscal até abril e reforma tributária no primeiro semestre.
Mas também afirma que a relação com o mercado melhorou nas últimas semanas com o alinhamento de expectativas.
Antes de um jantar com investidores e banqueiros, o ministro afirmou que a agenda proposta é uma oportunidade de “transformar essa herança delicada” deixada pelo governo anterior, mas que procura também realizar mudanças estruturais.
“Vamos combinar: o fiscal é pressuposto do desenvolvimento, mas não é um fim em si mesmo. Você tem que estar com as contas arrumadas, mas para desenvolver o país, você precisa de uma certa política proativa de mapear as oportunidades”, afirmou Haddad.
Ainda que o plano de aumento de arrecadação apresentado pela Fazenda seja um primeiro passo em direção positiva, os analistas esperam mais.
Tony Volpon acredita que houve alguma acomodação dos planos do governo, e principalmente uma definição de método: Lula montou um contrapeso de economistas ortodoxos por meio do Ministério do Planejamento, comandado por Simone Tebet, e será a voz final nos encaminhamentos.
“Com o passar do tempo foi caindo a ficha: esse é um governo que vai gastar mais, vai tributar mais. O equilíbrio é inflação e juro maior, porque esse é um contraponto a um impulso fiscal maior”, diz o economista.