Trabalho conduzido em necrotério na Zâmbia mostra que a realidade é completamente diferente da exibida oficialmente
O Globo – Os números oficiais da Covid-19 na África, considerados significativamente baixos em comparação com outras regiões do planeta, sempre foram, desde o início da pandemia, um dos maiores mistérios para os médicos. Pelas condições precárias do sistema de saúde em grande parte das nações do continente, esperava-se um efeito devastador. Mas isso não aconteceu. Inúmeras teorias começaram então a buscar explicações para a doença ter poupado o continente. Pois agora, um novo estudo conduzido em um necrotério na cidade de Lusaca, na Zâmbia, provocou uma reviravolta nesse cenário.
Entre as hipóteses levantadas até hoje, estão a pouca idade da maioria da população e temperaturas predominantemente quentes. Mas o trabalho aponta para outro caminho: uma gigantesca subnotificação.
Cientistas da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, e da Universidade da Zâmbia divulgaram resultados que mostram uma realidade bem diferente daquela retratada pelos registros oficiais. Conduzida no necrotério do Hospital Universitário de Lusaca — que recebe cerca de 80% dos mortos da capital zambiana —, a pesquisa identificou que nada mais, nada menos que 32% dos testes feitos em cadáveres entre junho de 2020 e junho de 2021 testaram positivo para a Covid-19. Destes, menos de 10% haviam recebido o diagnóstico enquanto vivos — um critério que as autoridades de saúde locais exigem para contá-los como parte do número oficial.
Em entrevista ao GLOBO, o líder do estudo, Christopher Gill, especialista em doenças infecciosas e professor do departamento de Saúde Global da Universidade de Boston, afirmou que os dados revelam uma face devastadora da doença que deve ser realidade não apenas na Zâmbia, como no resto do continente.
— Ninguém realizou esse tipo de vigilância fora de Lusaca, porém seria muito estranho imaginar que este caso seja uma exceção. Por que o que vimos seria único quando as condições que tornaram a Covid tão prevalente existem também em Nairóbi, Lagos, Cairo e outros lugares da África? — questiona o especialista.
Falta de dados
Estudos desse tipo no continente são raros. O modelo envolve uma série de recursos, tanto humanos como de estrutura, e leva tempo para ser montado. Porém, a equipe de Gill já trabalhava no necrotério em Lusaca desde 2017, quando começou a estudar o impacto do vírus sincicial respiratório (VSR) e da Bordetella pertussis, um dos agentes causadores da tosse convulsa, na mortalidade infantil. Com a chegada da pandemia, ele conta que foi relativamente simples mudar o foco do projeto para a Covid-19 e ampliar para todas as faixas etárias.
— Meu palpite é que muito poucos locais na África tiveram a sorte de ter todos esses ingredientes já posicionados quando a pandemia chegou. E o efeito da pandemia foi também a redução da viabilidade de recursos para os países mais pobres, porque as nações mais ricas estavam mais inclinadas a se concentrarem em si mesmas. A realidade é que, no momento em que África precisava desesperadamente de ajuda, em termos de vigilância de doenças, os recursos para isso foram menores — explica Gill.
Para se ter uma ideia, enquanto a Europa acumula 2.390 mortes por milhão de habitantes, esse índice na África é de apenas 184 óbitos — praticamente dez vezes menor. Desde 1º de março, a região passou a ter também a menor mortalidade do planeta, superando a Oceania que, com países como Nova Zelândia e Austrália, ficou conhecida como um exemplo no combate à doença.
O novo trabalho é, na verdade, a continuação de outro estudo publicado em fevereiro de 2021 na revista científica British Medical Journal, que ocorreu entre junho e outubro de 2020. O resultado da análise inicial, de 372 mortos, constatou uma positividade de 19%, com apenas seis dos 70 óbitos com Covid-19 diagnosticados em vida. A equipe decidiu então ampliar o tempo e o número de casos.
Assim, os cientistas analisaram 1.118 indivíduos que chegaram ao necrotério entre junho de 2020 e junho de 2021, e descobriram que a taxa geral de testes positivos foi de 32%. Esse índice foi ainda maior durante o pico da onda provocada pela variante Beta no país, em janeiro de 2021, quando chegou a 91,7%. Já no período de maior transmissão pela variante Delta, em junho do mesmo ano, a positividade foi de 83,8%.
Os pesquisadores destacaram que as mortes aconteceram em todas as idades, com cerca de 80% sendo em populações com menos de 60 anos. Além disso, concluíram que aproximadamente 80% dos óbitos foram em comunidades em que a testagem para a doença estava indisponível — o que leva à ausência nos registros oficiais.
— Nós temos a clareza que a subnotificação é um problema real, porque a notificação está relacionada aos serviços de saúde. A gente tem uma grande parte da população dos nossos países que não consegue acessar esses serviços, pela distância e condições de deslocamento, e acaba falecendo em casa, mesmo querendo acessá-los. São casos que não são notificados — explica o epidemiologista da Guiné-Bissau Tomé Cá, colaborador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz e membro da Organização Oeste Africana de Saúde.
Ele ressalta ainda que a subnotificação não é um problema exclusivo da Covid-19, sendo algo que acontece inclusive com a malária, uma das principais causas de morte no continente mesmo em tempos de pandemia. Isso porque o monitoramento demanda infraestruturas muitas vezes ausentes na África.
— Quando a pandemia começou, não eram muitos serviços de saúde que tinham capacidade de fazer o diagnóstico. Foi preciso um trabalho enorme de formação das pessoas, de acesso aos testes, de treinamento e assistência nos lugares, para permitir que os testes fossem feitos — diz o epidemiologista.
Segundo Christopher Gill, da Universidade de Boston, a equipe de Lusaca retomou o projeto de vigilância em janeiro deste ano e continuará atuando no necrotério por pelo menos mais um ano.
— Toda a dinâmica da pandemia mudou significativamente com a Ômicron, então não tenho ideia do que encontraremos daqui para frente. Mas estamos lá continuando a fazer o trabalho — afirma.
Realidade em Lusaca pode representar a África?
Em abril de 2020, um mês após a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a pandemia, um relatório das Nações Unidas previa entre 300 mil e 3,3 milhões de mortes na África apenas naquele ano. Dois anos depois, nem a marca mais otimista foi atingida. De acordo com os dados oficiais, pouco mais de 250 mil óbitos foram registrados até agora no continente.
A pesquisa na capital de 3,5 milhões de habitantes parece de fato sugerir uma realidade diferente da oficial, de que a África teria sido um dos lugares com menor incidência da Covid-19. O cenário é inclusive apontado por outros 150 estudos publicados nos últimos dois anos que, reunidos e analisados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), levaram o diretor da OMS na África Matshidiso Moeti a declarar que cerca de dois terços dos habitantes devem ter sido infectados pela Covid-19 – número quase 100 vezes maior que os dados oficiais do continente.
— Em setembro de 2021, havia 8,2 milhões de casos registrados. No entanto, a pesquisa indica que, na verdade, cerca de 800 milhões de pessoas foram infectadas nesse período — disse Moeti em teleconferência.
Os números aproximam a realidade no continente daquela registrada na África do Sul, o lugar com maior estrutura de vigilância epidemiológica da região. De acordo com dados do Our World in Data, até agora o país registrou um índice de aproximadamente 1.667 mortes por milhão de habitantes, uma taxa quase dez vezes maior que os cerca de 184 óbitos identificados por toda a África.
— Além do nosso estudo, a África do Sul é o único outro país do continente que realizou uma vigilância no impacto em hospitalizações e mortes, e eles também encontraram uma realidade devastadora. Então, de fato, os dois únicos lugares em toda a África que mediram esse impacto direto descobriram que a Covid-19 foi catastrófica — afirma Gill.
Paradoxo africano
Enquanto a equipe de pesquisadores da Universidade de Boston e da Universidade de Lusaca chamam a atenção para a subnotificação como principal justificativa para os baixos registros oficiais da Covid-19 na África, outros cientistas levantam hipóteses que sugerem uma menor mortalidade na região pela doença. É o caso de um estudo publicado na revista científica International Journal of Infectious Diseases por Yakubu Lawal, pesquisador do departamento de Medicina do Centro Médico Federal Azare, na Nigéria, que estabelece o que chamou de “paradoxo africano”.
Lawal reconhece uma notificação irreal, mas também defende que fatores como a idade média da população do continente ser de apenas 19 anos – contra 43 anos na Europa, por exemplo – podem levar a uma menor letalidade da Covid-19 na África, uma vez que a doença é mais severa em idosos. Segundo as Nações Unidas, apenas 3% dos habitantes do continente têm 65 anos ou mais.
Cá, da Organização Oeste-Africana de Saúde, acredita que, embora os números oficiais não representem a realidade, a Covid-19 pode de fato ser menos letal na região. Além do fator etário, ele considera que as temperaturas predominantemente quentes no continente também influenciam para uma realidade sanitária mais favorável.
— A África, de forma geral, vive o ano inteiro com a temperatura elevada. E as grandes ondas da Covid-19 nos outros países foram durante o inverno. Claro que a mudança das estações também influencia aqui, mas eu acredito que o clima quente durante o ano todo contribui para reduzir o números de casos — defende o epidemiologista.
Além disso, o estudo que aponta o ‘paradoxo africano’ sugere que a mortalidade pode ser reduzida no continente devido ao menor número de pessoas vivendo com doenças cardiovasculares, outro fator de risco para a Covid-19. Segundo Lawal, uma possível explicação seria que países com sistemas de saúde mais avançados conseguem retardar as doenças no coração, o que faz com que a população tenha um número maior de pessoas vivendo com a condição – e, portanto, mais suscetíveis à Covid-19.
Para Gill, no entanto, os experimentos em Lusaca mostram que não há embasamento suficiente para sustentar a hipótese de que a doença seria menos grave na África. Ele considera o “paradoxo africano” – que sugere também um melhor preparo do continente para combater epidemias devido às experiências com a malária, HIV e o ebola – como teorias “exóticas”. Para o professor, a realidade é apenas a subnotificação.
— O paradoxo africano não faz sentido, exemplos de saúde pública no mundo, como o Centro de Controle de Doenças, nos Estados Unidos, não conseguiram prevenir a pandemia de piorar. O desafio era muito grande para qualquer país, o vírus é muito contagioso.