Medida cristaliza volta da linha dura islâmica ao país desocupado pelos EUA no ano passado
Folha de São Paulo – O grupo fundamentalista islâmico Talibã promoveu a primeira execução pública de um criminoso condenado desde que retomou o poder no Afeganistão, em 15 de agosto do ano passado.
A prática era comum durante a primeira passagem dos talibãs pelo governo em Cabul, de 1996 a 2001, quando o grupo virou sinônimo de brutalidade medieval devido à sua leitura estrita da sharia, a lei islâmica tradicional.
Segundo divulgou o porta-voz Zabihullah Mujahid, um homem chamado Tajmir, da província de Herat (oeste afegão), foi condenado à morte por um assassinato cometido há cinco anos. Segundo a acusação, ele matou outro homem para roubar sua motocicleta e um celular.
O modo de execução não foi revelado, mas Mujahid afirmou que ela ocorreu em frente a “centenas de pessoas em Farah”, província também no oeste do país. Durante o primeiro governo talibã, homicídios usualmente eram punidos com um tiro na cabeça, disparado por um parente da vítima.
A pena capital, o apedrejamento, flagelações e amputações de mãos para crimes menores, como roubos e adultérios, foram reintroduzidos pelo Talibã em setembro do ano passado.
Os governos pró-Ocidente instalados a partir da derrubada do grupo em 2001 pela invasão norte-americana também aplicavam execuções, mas não como espetáculos públicos. O principal palco em Cabul era o Estádio Nacional, onde depois o campeonato local de futebol voltou a ser disputado.
Mujahid fez questão de dar um verniz legal ao tema, afirmando que a condenação foi decidida de forma “muito cuidadosa”, após decisão de três cortes superiores e aprovação pessoal do líder supremo do país, o mulá Haibatullah Akhundzada.
O episódio cristaliza a percepção de que o Talibã, embora tenha se adaptado relativamente aos novos tempos, busca mesmo repetir aspectos mais sombrios de sua forma de ver o mundo. Logo após voltarem ao poder, os fundamentalistas prometeram moderação e amplos direitos às mulheres, principal alvo de sua repressão.
Não durou muito. Meninas foram proibidas de receber educação formal além da sexta série do fundamental —o que foi vendido pelos talibãs como um avanço, dado que no seu primeiro governo elas não podiam ir à escola nunca.
Em maio deste ano, um decreto estabeleceu a obrigatoriedade do uso de véus cobrindo o rosto para mulheres, com três escalas de advertências para o “guardião masculino”, a última sendo três dias de prisão.
Na versão anos 1990, o Talibã obrigava o uso da burca, uma vestimenta tradicional da etnia pashtun que cobre todo o corpo, majoritária no país e em áreas fronteiriças do Paquistão. Foi de lá que o grupo surgiu, fomentado pelos serviços secretos paquistaneses para tomar o poder no país vizinho, arrasado pela guerra civil que sucedeu os dez anos de ocupação soviética (1979-89).
O objetivo de Islamabad era garantir profundidade estratégica com um aliado a mais na sua disputa com a Índia. O resultado foi o regime aberrante dos mulás, tolerado no Ocidente até que serviu de hospedeiro para a liderança da rede terrorista Al Qaeda, de Osama bin Laden.
O saudita havia lutado contra os soviéticos no Afeganistão e foi bem recebido por isso, após ter de fugir do Sudão, onde orquestrara ataque a alvos americanos na África e no Oriente Médio. Em solo afegão, elaborou a maior ação do gênero da história, o 11 de Setembro, em 2001.
A reação americana aos quase 3.000 mortos em seu território foi rápida, com uma guerra aérea apoiando rivais do Talibã em solo para punir o apoio de Cabul a Bin Laden. O grupo caiu rapidamente, mas espalhou-se pelo país, mantendo uma guerra de guerrilha contra os ocupantes ocidentais por 20 anos.
No ano passado, logo após assumir a Presidência, Joe Biden acelerou o acordo feito pelo antecessor, Donald Trump, para retirar o que restava de forças americanas no país. Produziu-se então um desastre humanitário, com o Talibã montando uma ofensiva de duas semanas que derrubou um governo afegão então sem proteção, visto largamente com um fantoche de Washington.
O exército local debandou em favor dos militantes. A retirada final de tropas americanas e de aliados na missão afegão foi humilhante, com aviões militares de transporte decolando um atrás do outro, em algumas ocasiões com civis que trabalhavam para os ocupantes agarrados a seus trens de pouso —só para caírem estatelados ou mutilados no solo.
O governo em Cabul segue isolado, salvo acordos pontuais como o que garantiu gás russo barato na esteira da Guerra da Ucrânia, e desafiado por grupos rivais, que promovem atentados. Enquanto isso, o êxodo de quem tem recursos para isso segue, como se vê com as centenas de afegãos acampados no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo.