Para revogar medidas do governo Bolsonaro será preciso analisar caso a caso. Equipe prepara proposta de norma com critérios mais claros a serem seguidos
O Globo – Promessa de campanha do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a derrubada dos sigilos de cem anos impostos pelo governo de Jair Bolsonaro esbarra na Lei Geral de Proteção de Dados. A chamada LGPD, que vigora desde 2020, veda a divulgação de determinadas informações pessoais de cidadãos. Técnicos que auxiliam o petista concluíram que não é possível fazer um “revogaço” e que será preciso analisar caso a caso. O núcleo de Transparência, Integridade e Controle da equipe de transição prepara uma proposta com embasamento jurídico para que Lula possa honrar com o que prometeu, sem correr o risco de ter que se explicar à Justiça.
O grupo estuda propor a criação de uma norma estabelecendo critérios mais claros a serem seguidos pelo novo governo para decidir se uma informação viola a “vida privada” de alguém ou apresenta risco à segurança nacional. Uma das possibilidades seria um decreto presidencial ou mesmo uma nota técnica da Controladoria-Geral da União (CGU) estabelecendo as diretrizes.
Um caminho seria a divulgação parcial dos documentos, mantendo ocultas determinadas informações, com tarjas. A palavra final fica a cargo da CGU, responsável por garantir os instrumentos de transparência no Executivo federal.
Nos últimos quatro anos, o governo Bolsonaro transformou em segredo documentos como os nomes das pessoas que visitaram a primeira-dama Michelle Bolsonaro no Palácio da Alvorada, as entradas dos filhos de Bolsonaro no Palácio do Planalto, o processo instaurado pela Receita Federal sobre o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso das rachadinhas e até mesmo telegramas diplomáticos relacionados à prisão do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho, no Paraguai.
Critérios subjetivos
A gestão Bolsonaro costumava usar um artigo da Lei de Acesso à Informação (LAI) para classificar dados como sigilosos. A legislação prevê que uma informação considerada de caráter pessoal, relativa à “vida privada” de alguém, deve ser resguardada por cem anos. Estabelece ainda que informações sensíveis à segurança nacional podem ser mantidas em sigilo por 25 anos.
A equipe de transição avalia que os critérios usados para amparar essas decisões de Bolsonaro são subjetivos. Eles entendem que grande parte das informações vedadas é de interesse público e, por isso, deveria ser aberta à consulta.
Participam da discussão do assunto nesse núcleo temático nomes como o ex-ministro da CGU Luiz Navarro, o advogado e ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência Mauro Menezes, que é responsável pelo relatório final, e o procurador da Fazenda Jorge Messias, coordenador do grupo e cotado para assumir a Advocacia-Geral da União (AGU).
A análise da liberação dos documentos deverá ser feita caso a caso, à medida que a equipe do futuro governo receba pedidos para liberar essas informações.
Proteção à intimidade
Em um estudo de setembro, a Transparência Internacional Brasil (TI) apontou que a falta de diretrizes claras para a divulgação de informações “parece contribuir para uma tendência crescente das autoridades públicas de se recusarem a revelar informações por motivos altamente controversos, particularmente sob o atual governo do presidente Jair Bolsonaro”.
O consultor da TI Brasil Guilherme France concorda que existe uma necessidade de dar uma “orientação mais precisa”.
— Com frequência, pedidos de acesso à informação são negados por serem considerados “desproporcionais”, “desarrazoados” ou “contrários ao interesse público”. É importante que se definam melhor esses termos e expressões para evitar uma interpretação excessivamente restritiva da Lei de Acesso à Informação — argumenta.
Especialistas em transparência e LGPD afirmam que é possível conciliar a divulgação de informações de interesse público com a proteção à intimidade.
O advogado Matheus Puppe, sócio da área de Privacidade & Proteção de Dados do Maneira Advogados e membro do Comitê de Integridade do Poder Judiciário (CINT), diz que o próximo governo pode conferir novas interpretações às normas de sigilo.
— A segurança nacional é uma justificativa muito ampla, genérica. Estamos tratando de uma transição. Outro governante pode avaliar que não traz nenhum risco à segurança nacional, desde que não exponha indevidamente os dados de alguém — explica.
Já a advogada Samantha Sobrosa, supervisora em direito digital na área de proteção de dados da Russell Bedford Brasil, diz que a administração precisa justificar a existência de interesse público na divulgação de determinados dados.
— Somente pode ser feito mediante o atendimento de uma finalidade pública, conforme diz a LGPD. Essa finalidade precisa ser trazida de forma transparente ao cidadão, justamente para demonstrar o interesse público para acesso a informações que eram consideradas sigilosas — resumiu.
Especialista em privacidade e proteção de dados do Viseu Advogados, a advogada Antonielle Freitas afirma que “atos políticos não se encaixam nas condições definidas para o sigilo”:
— O sigilo não pode ser usado para prejudicar a apuração de irregularidades envolvendo a pessoa ao qual o documento se refere. Existem relativizações (no sigilo) considerando pessoas politicamente expostas, mandatários de poder, que devem prestação de contas à sociedade.